
Hoje o Brasil vive um conflito geracional entre dois países que se contrastam: o Brasil do pós independência, que continua alinhado aos EUA, e o do pós Guerra Fria, parceiro estratégico da China desde 1993. Pois, ao se fazer um retrospecto histórico-comparativo, percebe-se que o peso da China vem há anos suplantando o dos EUA, especialmente em termos de volume dos fluxos comerciais. Tal dilema, por sua vez, desencadeia enorme pressão estadunidense – de veto à Huawei, p.ex. – cobrando uma postura mais assertiva ao alinhamento do passado e, por parte da China, o embargo à importação de carne brasileira, relacionada em certa medida à proximidade do leilão do 5G. Impasse que então expõe a inabilidade do Brasil para lidar com tal desafio que provavelmente (re)definirá suas relações internacionais nos próximos anos.
Não por acaso, a Iniciativa Cinturão e Rota ou Belt and Road Initiative (BRI, sua sigla em inglês) é a mais ambiciosa estratégia de inserção internacional chinesa por meio de grandes projetos de infraestrutura e que são relevantes para o mundo ainda em desenvolvimento. Sobretudo em tratando-se de crescimento econômico, desenvolvimento tecnológico e fomento da economia digital da América Latina e Caribe. Zona que até então estava sob inabalável influência estadunidense. Tratam-se de investimentos massivos em energia, transportes, telecomunicações e meio ambiente que tentam não apenas preencher a lacuna deixada pelos EUA, como também suprir as deficiências estruturais do subcontinente nesses setores estratégicos.
A China destaca-se por apresentar uma série de vantagens comparativas em áreas negligenciadas pelos estadunidenses, e que agora tentam contra atacar por meio, p.ex., da assistência técnica do América Crece para as redes móveis de quinta geração (5G), programa de parceria que visa campos de infraestrutura crítica e dados sensíveis, como segurança cibernética e conectividade digital. E o mesmo pode ser dito de sua ofensiva global por meio do Build Back Better World (B3W), uma iniciativa do G7 (grupo que reúne as maiores economias do mundo). Mesmo assim, especialistas não acreditam que o recém lançado B3W consiga concorrer com a BRI, uma vez que o maior programa de infraestrutura do mundo (totalizando aproximadamente US$ 575 bilhões) sai na frente em quesitos mais convidativos aos países com menos recursos, tais como baixo custo, padrões mais flexíveis e prazos mais céleres.
Triangulação China-Brasil-EUA: muitas variáveis em jogo
Todo esse introito pode até parecer digressão aos menos familiarizados com o assunto, mas é uma análise sistêmica necessária, dada a relevância do debate mais estruturado e aprofundado acerca da triangulação China-Brasil-EUA. E quais as consequências práticas de uma possível adesão do Brasil à BRI. Pois, se por um lado, essa situação já vem sendo contornada pelo Programa de Parceria de Investimentos (PPI), criado em 2016 justamente para ampliar e fortalecer uma interação sino-brasileira diferenciada entre Estado e iniciativa privada. Por outro, a entrada efetiva do Brasil possivelmente seria alvo de represália tarifária pelos EUA.
Logo, por uma questão de pragmatismo e cálculo estratégico, não faz sentido o Brasil aderir formalmente ao sistema no qual já está inserido. Seria redundância e/ou preciosismo de sua parte, considerando que, pelo caráter preferencial que o Brasil já possui, sua situação é bem melhor do que a dos demais países da África, América Latina e Caribe que ainda buscam atrair os investimentos chineses. Argumento corroborado pela posição do Brasil como parceiro estratégico global da China desde 2012, como relembra o Conselho Empresarial Brasil China – CEBC. Sobretudo após a reativação da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban) em 2019. Ou seja, “mesmo que o Brasil não integre a rota, os aportes poderiam ser absorvidos no PPI”.
Como se não bastasse a rivalidade histórica entre as duas super potências, hoje há outras variáveis em jogo. Uma vez que se acredita que quem saia na frente da corrida tecnológica conseguirá não só criar, mas também assegurar um mercado ainda emergente, como é o caso das novas tecnologias digitais de informação e comunicação (TIC), biotecnologia e economia verde. Trata-se, portanto, de vencer a concorrência ou ao menos competir de igual para igual. O que significa conquistar nova fatia de usuários ávidos por consumismo em massa, por jogos online e aplicativos em mega plataformas digitais como Apple, Google e Amazon. Incluindo desde operações bancárias mais sofisticadas ao delivery de comida, nem que seja para entrega de um singelo sorvete na porta de casa.
E há competição, em particular, quanto à adesão deste grande mercado consumidor ainda pouco explorado (leia-se mundo em desenvolvimento) ao braço digital da BRI, em virtude da entrada de novas tecnologias como o 5G no Brasil. Acirrada pelo uso dual das tecnologias de informação e comunicação (TIC) para fins híbridos, tanto civis quanto militares. Esta adesão dá ensejo, então, a questões bem mais amplas e complexas do que em outrora, tais como garantia da defesa nacional, soberania digital, interoperabilidade entre as redes e segurança da informação e cibernética. Mas que apesar de toda a modernidade que se projeta para o século XXI, ainda reverberam uma ideia arcaica e preconcebida de que a inserção internacional da China, através de sua indústria 4.0, representa uma ameaça global, pelo perigo de hiper vigilância e espionagem, roubo de segredos comercial e industrial, e uma série de outras supostas violações à propriedade intelectual, privacidade e proteção de dados pessoais.
O Oriente ainda mitificado pelo Ocidente
É dentro dessa linha de pensamento mais conservadora que reverbera a narrativa de uma “ditadura digital”, dado o papel polivalente do Estado chinês, no sentido de planejamento para gestão mais eficiente da economia, como também nem tão positivo assim, dada a maior intervenção Estatal, controle social e político, ao centralizar esses centros de comando a um regime onde, em tese, é totalitário, pelo simples fato de não haver eleições livres nem alternância de poder. “Ameaça”, em particular, após o comunicado da OTAN, em junho de 2021 visando denunciar o perigo que a ascensão nem tão pacífica que a China representa, dado o incremento de seu poderio nuclear. Lembrando que a OTAN é uma aliança política-militar criada após a 2ª Guerra Mundial em resposta justamente à expansão comunista pelo mundo.
Tal discurso é, no entanto, falacioso, como bem explica Giovanni Arrighi em Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI, uma releitura do clássico A Riqueza das Nações. Desmistificando um velho tabu, ao mostrar que os EUA são um dos Estados mais intervencionistas no mundo, tanto interna, quanto externamente, desde o campo militar ao de inteligência. Sobretudo quando se trata de investir em inovação tecnológica do seu parque industrial e proteção do mercado doméstico. Nem que para isso tenha que vigiar e acompanhar de perto seus aliados, como Brasil e Alemanha (como foi o escândalo da NSA, denunciado por Edward Snowden já em 2013). Em outras palavras, quem tem histórico comprovado de espionagem são os EUA, e não a China (quanto a esta existe apenas suposição).

Razões, então, para acreditar que, a despeito do que se fantasia sobre ela, a China contemporânea está atenta a isso e procura construir uma imagem exterior positiva, ao agir pragmaticamente, estando em maior consonância com o estado de direito (rule of law). Sobretudo a partir de sua nova onda regulatória no setor privado, caracterizada pelo aprofundamento do seu processo de digitalização (iniciado antes mesmo da pandemia) e pela correção de distorções socioeconômicas e falhas de mercado ao longo de seu intenso e acelerado processo de desenvolvimento tecnológico. Preferindo assim atuar de modo menos ideológico possível, a fim de que sua presença internacional torne-se digna de confiança pública e mais competitiva do ponto de vista de ganho tanto concorrencial quanto mercadológico.
E é dentro desse raciocínio que o dirigismo Estatal justifica-se no contexto chinês; por uma questão de sobrevivência nessa disputa, a fim de compensar suas fragilidades, em razão de especificidades estruturais e vulnerabilidades históricas. Pois, do contrário, não conseguiria crescer economicamente e desvencilhar-se das armadilhas que a aprisionavam ao subdesenvolvimento do Sul Global, tais como desigualdade social e pobreza.
É como argumenta também a professora Isabela Nogueira em O Estado na China. Permitindo com que o Estado hoje assuma riscos e acumule o papel também de investidor e empreendedor. Sobretudo no campo sensível das tecnologias emergentes como IA, Big Data, internet das coisas e, em especial o 5G, visto como infraestrutura crítica e necessária para sua integração em rede. Não havendo, então, mais razão para classificá-la como um regime totalitário que não segue regras e viola padrões internacionais.
Há, assim, na China, um regime singular de regulação Estatal sobre sua economia política, mas que, aos olhos do Ocidente, ainda está atrelada ao “perigo amarelo” denunciado por Edward Said no seu livro Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Isto é, a percepção enviesada de um governo opressor que tenta infiltrar-se e subverter o sistema internacional, sabotando o Estado democrático de direito.
Trata-se, na verdade, de uma construção retórica diversionista a fim de legitimar a hegemonia ocidental e identidade cultural eurocêntrica. Recurso hoje revisitado com a entrada das tecnologias digitais, já que estas detêm o potencial tanto para ampliar o poder Estatal por novos aparatos de informação e comunicação, quanto potencializar suas capacidades de controle e vigilância. Processo conhecido como “tecno autoritarismo”.
Tecno autoritarismo: ameaça diversionista que é repaginada
Ocorre que o alegado “tecno autoritarismo” é um fenômeno de alcance global, não exclusivo à China e que independe de sistema e regime de governo. Todavia, quando essa inverdade é confrontada, há comumente uma fuga argumentativa, para não ter que se defender. Isto é, atribui-se ao outro aquilo que lhe é imputado ou mesmo algo absurdo, que causará comoção, com objetivo de confundir ou tirar o foco de si. E isso é feito de forma repetitiva e exaustiva, em canais e fontes diferentes, a ponto de não importar mais se é ou não verdade e, assim, naturalizar tal narrativa. Daí a técnica diversionista conhecida como “firehose of falsehood”. Uma estratégia de comunicação russa há bastante tempo usada na esfera política.
Na era digital, há, de fato, um novo tipo de governança global que aumenta o risco de ocorrer arbitrariedades e violações sistemáticas de direitos e liberdades individuais. Dada a assimetria de poder que pode ser gerada entre governo e mercado que tudo sabem e controlam, e usuário que entrega dados e informações pessoais em troca de produtos e serviços, mas nem sequer sabe ou consente com tal estado de vigilância permanente, via a chamada “economia de plataforma” que atualmente media quase todos os aspectos da vida cotidiana sem dar muita escapatória àqueles que não se submetam aos seus termos. Há, assim, aumento do risco de abuso de poder que, todavia, não é circunscrito ao contexto do China, já que este dilema está sendo enfrentado até mesmo por democracias liberais, segundo estudo do V-Dem Institute.
No Brasil, em particular, a cruzada contra o perigo de uma “ditadura digital” vinda da China partiu da iniciativa do governo federal pelo então ministro das relações exteriores Ernesto Araújo. E no mundo, como um todo, a partir da alt right infiltrada em setores mais tradicionais (como as alas militar, diplomática e de inteligência). No livro Guerra pela Eternidade, o retorno do Tradicionalismo e a ascensão da Direita, Benjamim Teitelbaum atribui esse movimento a uma mentalidade apegada à Guerra Fria e que ainda acredita em uma visão binária de mundo, de alinhamento quase automático ao hegemon dos EUA. E que hoje é revisitada através do combate ao comunismo (personificado no Partido Comunista da China – PCCh).
Sobretudo quando aqui se apropria desse embate geopolítico entre China-EUA e o internaliza como se fosse um jogo de soma zero. Uma leitura equivocada, segundo o professor Evandro Menezes de Carvalho, já que o Brasil não precisa tomar partido e escolher um modelo em detrimento de outro. É o que também defende Rafael A. F. Abrão em Como o Brasil deve se posicionar diante das disputas entre China e EUA?
Há, então, esse componente político-ideológico do passado — hoje exacerbado pela polarização das redes sociais — que, intencionalmente ou não, replicam esses pré-conceitos. E são esses obstáculos culturais e valorativos que dificultam a comunicação e complexificam as escolhas e tomada de decisão dentro dos processos decisórios mais importantes, como é o debate acerca do 5G no Brasil e de sua adesão ou não à BRI. E, por conseguinte, o debate não avança, não passa de fase. Fazendo com que o país atrase e fique para trás. Imbróglio que não é algo de novo, existindo desde o Orientalismo e descrito como a visão deturpada de uma China ainda bárbara, ameaçadora, incivilizada e que hoje é repaginada para o atual contexto de desinformação generalizada sobre a China e possíveis origens da pandemia.
O custo de um discurso anti China
Argumenta-se, portanto, que a retórica anti China presta um desserviço à parceria sino-brasileira, dificulta o diálogo e a continuidade de uma relação de mútua confiança. Sobretudo por desconsiderar todo o retrospecto de coexistência pacífica com a China e de complementariedade estratégica de suas economias. Logo, é preciso desconstruir esse discurso difundido por campanhas que, além de criticarem o direcionamento político pelo presidente Xi Jinping e divulgarem inverdades sobre a China, vulnerabilizam também o Brasil, pois atentam contra o interesse nacional em estreitar relações diplomáticas que datam de mais de quarenta anos com seu maior parceiro comercial desde 2009.
Pois, apesar de todo o mal-estar entre China e o Governo Bolsonaro, os investimentos chineses no Brasil permanecem, apesar da retração em 74% e recessão global em 2020 (segundo pesquisa recente do CEBC). Assim como o bom funcionamento de setores decisivos para o equilíbrio das contas externas e saúde da economia – como o do agronegócio – que ainda não foi severamente abalado, visto que continua como carro-chefe de nossas exportações.
Ademais, não houve uma ruptura como a acontecida com a Austrália, até então um dos maiores parceiros comerciais dos chineses. Especialmente após a Austrália engajar-se no discurso anti China que é liderado por seu aliado estadunidense e tornar-se um dos maiores apoiadores de uma investigação internacional sobre a origem do coronavírus. E que resultou não apenas em retaliação chinesa, mas em uma mensagem clara de que ainda que as parcerias sejam robustas e de longa data, há alternativas viáveis e nenhum parceiro é indispensável. Enfim, o objetivo aqui foi contextualizar a fundo, trazendo outros argumentos para uma tomada de decisão realista, mais informada e qualificada. A fim de que eventuais ruídos difundidos na internet e pelas redes sociais não abalem essa convivência pacífica e representem um retrocesso nas relações já consolidadas entre Brasil e China.
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