Cultivo taoísta e meditação

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Nossa mente agita e dispersa em meio às inúmeras forças externas que nos desviam do que é essencial.  É por isso que Laozi chama a atenção para lembrarmos de nossa origem e, nesse caso, a autorrealização não é senão o caminho de retorno ao Princípio Imemorial, o retorno à Essência Originária que já habita profundamente dentro de nós mesmos. Na medida em que cultivamos o estado de Vazio em conexão com a Essência Originária, percebemos que os nossos pensamentos não possuem uma existência permanente.

Ora emerge um pensamento, ora surge outro. Todos os pensamentos sucedem-se na inconstância e nenhum deles conserva-se. Nossos hábitos levam a pensar que são sempre os mesmos pensamentos. Mas essa impressão ilusória nascem em razão do nosso apego e fixação. É nesse momento que precisamos examinar o fluxo de nossos pensamentos e observar se realmente é um fluxo inconstante ou um bloco estático. Durante a meditação, perceberemos que todo e qualquer pensamento desvanece no Vazio.

Um determinado pensamento ou sentimento em si nada possui de substancial. Eis que então percebemos que em toda a Existência o que aflora é o Vazio de todas as coisas, o Vazio do pensamento, do sentimento e de todos os outros fenômenos. Porém, ainda durante a meditação, outro fenômeno paradoxal revela-se: o Vazio em si não é algo que subsiste de modo permanente como um “pensamento” ou um “estado de ser” nem algo efêmero e inexistente.

“Na medida em que cultivamos o estado de Vazio em conexão com a Essência Originária, percebemos que os nossos pensamentos não possuem uma existência permanente”. Crédito: reprodução da internet.

Em estado profundo de meditação, sentimos que ocorre tanto a sucessividade efêmera de instantes descontínuos como o fluxo permanente de um Tempo Indivisível. Tanto um aspecto quanto um outro são apenas dois lados da mesma moeda, tanto o Vazio Transcendente como a Existência com suas manifestações dualísticas são duas faces do mesmo Rosto Originário como já dizia Laozi.

No fundo, quem separa ou liga um instante a outro é a nossa mente (心-xin). Tanto a sucessividade descontínua como a indivisibilidade contínua são modos de perceber que em si não são falsos nem verdadeiros. É nesse instante que deixa de fazer sentido saber o que é constante ou inconstante, o que é verdadeiro ou ilusório, o que existe ou não existe. Cessa toda especulação e, consequentemente, toda aflição mental. Se fluirmos no aqui e agora com naturalidade, penetraremos na dimensão luminosa do Mistério (玄-xúan) onde sentimos que somos apenas centelhas da Suprema Harmonia (太和-tàihé).

Não somos mais constantes ou inconstantes, não somos mais ou menos que ninguém, não somos mais o pensamento ou a emoção, ou qualquer outra essência substancial. Não importa o que somos ou deixamos de ser. Simplesmente somos aquilo que já éramos, assim como é uma árvore, um rochedo ou um pequeno inseto. Somos aquilo que por si mesmo é (自然-zìrán). Não sentimos mais nenhuma necessidade de nomear (definir) e de saber o que nos acontece. Simplesmente respiramos e somos o fluxo do Sopro Vital (气-qì). No Sopro há a Existência tanto como o Vazio. É ali que a Vida nasce e renasce, pois todas as coisas transformam-se. Desse modo, somos o Vazio (无-wú) tanto como a Existência (有-yǒu) de todas as coisas, a Luz e a Escuridão do fluxo desse Mistério.

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Se praticamos o cultivo do Vazio e do Silêncio, ficamos cada vez menos envolvidos pelas superficialidades. Observamos atentamente os acontecimentos no seu processo natural e agimos de acordo com as situações, com o cuidado de seguirmos o fluxo da Naturalidade. Eis o que é a eficácia da Não-Ação (无为-wúwéi). Passamos a agir sem permanecermos fixados em nossos próprios pensamentos, desejos, caprichos, sentimentos e volições. Tal atitude não significa passividade, indiferença ou inação (“não fazer nada”), como se os acontecimentos fossem meros produtos da casualidade. Ao contrário, trata-se de agirmos no estado de Não-Mente (无心-wúxīn) sem apego (执着-zhìzhúo) e sem ignorar as circunstâncias de um contexto mais ampliado.

A prática da Não-Ação possibilita que nosso ser esteja em harmonia com a essência da totalidade do Dao, livrando-nos do apego, da artificialidade e da ignorância. O cultivo do Caminho não é adquirimos mais conhecimento, fama, riqueza e bens externos, como se esses fossem os fins supremos da nossa existência. Pois, se agirmos dessa forma, essa ação continuará sendo a ação de uma mente que deseja intervir de acordo com seus caprichos e fins arbitrários. Daí a necessidade do ato de meditar, o que não quer dizer ficar estático numa espécie de mortificação. A meditação provoca uma reviravolta radical.

Laozi fala do ato de contemplar (观-guan) que é como se fosse um ato de ver, mas não no sentido físico. Trata-se de uma visão direta (直观-zhíguan), de uma experiência de visão cuja verdade só adquire seu valor para aqueles que praticam a contemplação. A própria palavra “experiência” já remete ao domínio do empírico, e portanto, é extremamente reducionista. Não se trata de uma vivência ou de uma experiência no sentido empírico como se houvesse algo de natureza empírica que se contrapusesse a algo mais intelectivo, abstrato e não-empírico.

O pensador Laozi. Crédito: reprodução da internet.

A própria palavra “contemplação” também é limitada, porque sugere a ideia de distanciamento, de inação, de passividade ou algo parecido, como se estivéssemos olhando a realidade de maneira distanciada ou como se essa contemplação fosse algo oposto à “ação”. Esse estado de ser contemplativo é mais um estado de espírito onde somos banhados internamente pela luz da iluminação e do silêncio que não é senão a própria compreensão de que estamos conectados ao fluxo do mistério do Dao.

É só nesse momento que sentimos que nossa essência é profunda, grandiosa e ilimitada de modo que até abraçamos todos os seres tal como o Dao abraça o universo. Tal amplitude (容-róng) permite aceitar todas as dez-mil coisas (容受万物-róngshòuwànwù) como diz Laozi. É justamente essa aceitação que nos aproxima da perenidade (久-jiǔ) do Dao sem que tenhamos mais o medo da morte e de outras contingências pelas quais teremos de atravessar durante a nossa vida.

É por isso que se continuarmos perseguindo exclusivamente os bens supérfluos do mundo, seremos afastados cada vez mais da morada autêntica. Com a chegada da morte, é evidente que estaremos atormentados, pois, ao invés de termos cultivado essa conexão genuína, o que cultivamos foi apenas algo transitório e inútil. Em outras palavras, se estivermos ainda apegados a tais trivialidades, mal estaremos cuidando da nossa morada interna, a saber, daquela essência constante e perene do Dao que refulge dentro de nós. Por consequência, sentiremos a morte como um fenômeno terrivelmente medonho e absurdo.

Do nascimento até a morte,
três entre dez são os caminhantes da vida;
três entre são os caminhantes da morte;
três entre dez são os que avançam para a terra da morte.

Por qual razão?
Eles vivem excessivamente a vida.
Dizem que aquele que cultiva bem a vida,
caminha sem se defrontar com tigres e rinocerontes,
ingressa na luta sem sofrer com armas e couraças.

O rinoceronte não tem onde enterrar seu chifre.
O tigre não tem onde encravar suas garras.
As armas não têm onde enfiar suas lâminas.
Por qual razão?
Nesse homem não há a terra da morte.

Laozi, Dao De Jing

Geralmente nos apegamos à vida e rejeitamos a morte. Porém, do ponto de vista do Dao, a vida e a morte são interdependentes e coexistem na harmonia do Todo. A única atitude apropriada é a do sábio que cultiva bem a vida, assim como quem ama e cultiva as coisas essenciais. Como ele não se apega à fama, à riqueza e ao poder, ele jamais sofre o ataque violento de outros seres (“caminha sem defrontar-se com tigres e rinocerontes”).

Segundo Wang Bi (Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧), se o sábio nunca alimenta o sentimento de apego e tampouco age com ressentimento, jamais será prejudicado pelos perigos externos representados pela metáfora dos animais ferozes. Na ausência de apegos, como não há mais gratificação dos desejos voltados para a exterioridade, ele preserva a si mesmo no seu centro vital.

Como diz Su Zhe, quem avança para a morte fere a si mesmo devido ao contato com as formas externas do mundo. Porém, o sábio não caminha nessa direção, uma vez que retorna sempre ao estado do Vazio e jamais desperdiça a sua força vital. De maneira análoga, cuidaremos de nossa vida se praticarmos o estado de wúwei e os inúmeros modos de desapego: o desapego ao conhecimento, o desapego à ação e o desapego aos desejos. Isso significa que podemos cuidar bem do Brilho Divino (神明- shénmíng) presente no nosso corpo e espírito, como dizia He Shang Gong (Laozi, Dao De Jing: Escritura do Caminho e Escritura da Virtude com os comentários do Senhor às Margens do Rio), de sorte que não sejamos vítimas do perigo das forças destrutivas (“armas, rinocerontes e tigres”) que somente trazem consigo os malefícios da “terra da morte”.

Se eu tivesse conhecimento verdadeiro
e seguisse em acordo com o Supremo Dao,
ainda assim temeria o extravio.

O Supremo Dao é suave e plano,
mas os homens gostam de desvios:
excedem-se na construção dos palácios,
enquanto os campos ficam desolados
e os celeiros permanecem vazios;
vestem-se com trajes refinados,
carregam espadas afiadas,
enfastiam-se com bebidas e comidas
e ainda se apropriam de bens supérfluos

Eis o que se chama a grande rapina,
a própria negação do Dao!

Laozi, Dao De Jing

Além disso, é fundamental perceber que o caminho do Grande Dao é simples e suave, porém a maioria das pessoas gosta de desviar em atalhos complicados. Isso acontece quando a mente humana esforça-se em agir e interferir, criando mais distúrbios, perturbações e obstáculos desnecessários. Se as pessoas praticassem o wúwéi e o ensinamento do Dao com desapego, simplesmente estariam mais harmonizados com o caminho da simplicidade.

De acordo com Wang Bi, quando desejamos agir com “atalhos” e artifícios engenhosos que não nos proporcionam nenhuma percepção real do que seja a essência do autêntico, afastamo-nos cada vez mais do caminho do Dao e, devido ao excesso de ações “supérfluas”, prejudicamos a nós mesmos e aos outros. Ficamos acorrentados à “grande rapina, a própria negação do Dao”.

O que observamos na sociedade atual é que as pessoas são habilidosas para embelezar a superfície das coisas por meio de artimanhas, tergiversações e falsos estratagemas, mas, segundo Su Zhe, o sábio é justamente aquele ser autêntico no sentido de que nele manifesta-se a essência da pureza e da simplicidade do Dao. Enquanto o vulgo desconsidera o princípio do Dao para buscar as coisas superficiais, o sábio resguarda-se na essência preciosa da vida e da Naturalidade.

É por isso que se seguirmos a trilha da sabedoria, evitaremos toda espécie de artificialismo. No Vazio Perfeito, o mestre Liezi leva-nos a refletir sobre o valor de seguirmos o princípio da suavidade como atitude que minimiza o desejo de dominação presente na Ação Forçosa e na Artificialidade. É no autocultivo da moderação, da suavidade e do autoconhecimento que estaremos fluindo com a potência da Vida.

No mundo, há um Caminho (Dao) pelo qual uma pessoa sempre poderá dominar e há um caminho pelo qual nunca poderá dominar. O Caminho pelo qual se pode sempre dominar chama-se Suavidade e o caminho pelo qual nunca se pode dominar chama-se Força. Ambos são facilmente conhecidos, porém os homens ainda não têm esse conhecimento. Por isso, os antigos diziam que a pessoa forte deseja superar os outros, enquanto a pessoa suave deseja superar a si mesma.

A pessoa que deseja dominar os outros quando encontrar alguém mais forte estará em risco. Contudo, a pessoa que deseja dominar a si mesma nunca estará em risco. Quem domina seu corpo através da Suavidade poderá assumir o mundo. Os antigos diziam aquele que não utiliza a Força para vencer os outros será capaz de vencer a si mesmo. Assim, quem não utiliza a Força para assumir o mundo será capaz de assumir o mundo.

Yu Zi disse: “Se você deseja ser firme, deve preservar a Suavidade. Se você deseja ser forte, deve resguardar a Brandura. Preservando a Suavidade, você será capaz de ter firmeza. Resguardando a Brandura, você será capaz de ter Força. Observando esse cultivo da Suavidade você poderá conhecer a origem da felicidade ou infelicidade.

As pessoas fortes dominam as pessoas brandas, porém quando aquelas encontram outras mais fortes, elas podem ser dominadas. Aquele que é suave poderá sempre dominar e sua Força será imensurável. Por isso, Laozi dizia: ‘A arma forte aniquila-se e a árvore forte esfacela-se. Os suaves e brandos caminham para a vida. Os rígidos e fortes caminham para a morte’”

Liezi, Vazio Perfeito

Portanto, se realmente valorizarmos e cuidarmos da essência da Vida que habita em nossas profundezas, deixaremos de apegar-nos às coisas externas, à riqueza excessiva, à imoderação, ao orgulho, à inveja, ao espírito de competitividade, ao sentimento de arrogância, ao desejo de dominar as pessoas e o mundo em que vivemos. Somente a partir desse autocultivo estaremos agindo como o sábio taoísta de acordo com o Princípio Supremo da Naturalidade do Dao.

Yang Zhu disse: “O ser humano assemelha-se à forma do Céu e da Terra. Contém a natureza dos Cinco Elementos. É o mais inteligente dentre as criaturas. No entanto, no ser humano, suas garras e dentes são insuficientes para protegê-lo. Sua pele e carne são insuficientes para resistir aos inimigos externos. O ser humano nem sempre é capaz de correr para fugir dos perigos. Não tem pelos e plumas suficientes para proteger-se contra o frio ou o calor. Ele depende de outras coisas externas para cultivar sua vida e pode fazer uso da inteligência em vez da mera força bruta.

Por isso, o valor do conhecimento baseado na inteligência reside no fato de que ele é precioso para preservar a própria vida, enquanto a força bruta é vil quando utilizada para ferir os outros. Assim, eu não sou proprietário do meu corpo. Uma vez que estou vivo, não posso senão preservar a minha vida. As coisas externas também não são minhas posses. Contudo, mesmo que eu as tenha, não é necessário que eu as dispense.

É evidente que o corpo é o princípio da existência e as coisas externas são úteis também para a cultivarmos. É necessário preservar a nossa vida, mas não podemos considerar o corpo como sendo de nossa propriedade. Embora não possamos dispensar as coisas externas, também não podemos considerá-las como sendo nossos próprios bens.

Se desejamos apoderar-nos das coisas externas e do nosso corpo, estaremos de modo obstinado considerando como sendo nosso bem particular aquilo que pertence ao mundo em geral. Somente o Sábio compreende essa verdade! Somente o virtuoso considera o corpo e as coisas externas como pertencentes ao mundo! Eis o que seria a sublime sabedoria!”.

Liezi, Vazio Perfeito

Chiu Yi Chih (邱奕智)
Nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro, é professor de filosofia taoísta e de mandarim (leitura instrumental) no Centro Cultural de Taipei e nos cursos online de Taoísmo. Filósofo, poeta e tradutor do “Dao De Jing” de Laozi , “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte da guerra” de Sun-Tsu (comentado), publicados pela Editora Edipro (selo Mantra). Praticante de Tai Chi e meditação. Mestre em Filosofia Antiga Grega (USP) e graduado em Letras (Grego Clássico-Português/USP). Publicou um livro de poesia “Naufrágios” (Multifoco-2011) e um outro de ensaios filosóficos “Metacorporeidade” (Córrego-2016). Em breve, será publicado “Osso Vazio” (Contravento Editorial) e está atualmente traduzindo “Os ensinamentos de Bodidharma” diretamente do mandarim. Visite seu site, textos e cursos http://www.mandarimtaoismo.com

Referências

Laozi, Dao De Jing; tradução de Chiu Yi Chih, Editora Mantra, 2017, cap.50

Laozi, Dao De Jing; tradução de Chiu Yi Chih, Editora Mantra, 2017, cap.53

Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing: Xinshijiechuban, 2016, p.168.

Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing: Xinshijiechuban, 2016, p.169.

Laozi, Dao De Jing: Escritura do Caminho e Escritura da Virtude com os comentários do Senhor às Margens do Rio / Laozi; tradução, notas, variantes e seleção de textos de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.368.

Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing: Xinshijiechuban, 2016, p.177.

Liezi, Vazio Perfeito (Editora Mantra), 2020, p.73 (minha tradução)

Liezi, Vazio Perfeito (Editora Mantra), 2020, p.237 (minha tradução)

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por Anders Noren

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