A ética da moderação na visão taoísta

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A filosofia taoísta preconiza o cultivo do princípio da moderação (俭-jiǎn) que traz os benefícios à saúde, reduzindo os desgastes, os desequilíbrios e as instabilidades emocionais. Assim, com a arte da moderação, diminuímos o uso excessivo dos órgãos dos sentidos corpóreos e evitamos as distrações da divagação mental. A palavra chinesa “moderação” empregada no contexto taoísta significa “cuidado e valorização daquilo que é essencial” (爱惜-àixi) no sentido de “frugalidade” (俭省-jiǎnshěng) e de precaução contra o desperdício da energia físico-mental que ocorre quando há a excessiva interferência da mente e da ação forçosa. (Yi, Wu Hong (吴宏一) Laozixinshi 老子新释. Nova interpretação de Laozi. Taipei: Yuanliu, 2017, p.296).

Imaginemos uma pessoa que trabalha excessivamente, sem repouso e descanso, preocupada apenas com os afazeres exteriores e mergulhada em conversas mundanas. Desfrutando de prazeres momentâneos, essa pessoa sempre está falando mal das outras pessoas e ostentando o brilho falso da sua inteligência. Ora se desanima com uma situação, ora se enaltece numa alegria desmesurada. Volúvel, insegura, oscila entre aborrecimento e regozijo. Nunca para de resmungar contra as próprias circunstâncias. No entanto, ao invés de se conscientizar de seus estados de inconstância, ela prefere continuar sendo determinada pelas influências externas, comportando-se como uma marionete presa aos hábitos e condicionamentos.

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Conformada às situações que lhe aparecem, sente-se “pressionada” e jamais se conscientiza da volubilidade de seu próprio estado de ser. Esse círculo vicioso de emoções, sensações e pensamentos inconstantes só a levam a difamar o valor da vida e do conhecimento. Se examinarmos de maneira objetiva a vida da maioria das pessoas, veremos o quanto é tolhida por artificialismos, hábitos mecanizados, incongruências, marés de dissabores e contradições. Uma mixórdia total! Por exemplo, num determinado momento ela deseja fazer isso, mas, num outro momento, já muda de ideia e abandona o desejo inicial. Tudo nela se torna tão volátil e inconsistente num estilo de vida marcado por tantas flutuações.

É por esse motivo que nada de sólido e vigoroso floresce nesse terreno tão movediço! Nesse sentido, o exercício da moderação no dia a dia passa a ser uma prática tão necessária. É evidente que não adianta praticarmos duas ou três horas de meditação sentada se depois no dia a dia agirmos de maneira irresponsável e inconsciente; ou se, praticarmos uma hora de Tai Chi, mas, em seguida, inflamados pelo fogo da arrogância, menosprezarmos as outras pessoas; rezarmos ou venerarmos uma determinada divindade, mas, na relação com os outros, ficarmos agitados pelo medo, desconfiança, raiva e ressentimento. Tais inconsistências não raro acontecem e mesmo até quando a nossa vida transcorre em situações favoráveis.

Para governar as pessoas e servir ao Céu,
não há nada como a moderação.
Somente com a moderação age-se em concordância.
Agir em concordância é acumular a Virtude.

Estimando o acúmulo da Virtude,
não há nada que não se possa conquistar.

Se tudo é conquistado,
então não haverá limitações.

Não se conhecendo limitações,
então se pode adquirir o reino.

Com a mãe do reino, é possível perdurar.
Isso se diz a raiz profundamente plantada:
o Dao da Vida Perene e da Visão Duradoura

Laozi, cap. 59

É quando agimos na Naturalidade do Dao (“Céu”) e estamos em harmonia com o mundo que passamos a cultivar a moderação ativa e consciente no que diz respeito às nossas sensações, pensamentos, sentimentos e crenças. Não obstante, isso não significa determos o fluxo da vida e desejarmos que a vida sempre se conserve numa espécie de fixidez. Aqui a prática da moderação não significa “não-mudança”, ou seja, estarmos apegados a uma espécie de “permanência” estática.

Ao contrário, através dela, ampliamos nossa consciência no sentido de percebermos que, embora haja tantas mudanças pelas quais estamos passando durante a vida, não há necessidade de nos identificarmos com elas, porque se tudo transforma-se, não seria razoável que ficássemos apegados a um fenômeno ou a um outro. Por exemplo, se perdermos uma boa oportunidade, ao invés de lamentarmos sobre essa perda, aprenderemos a ficar mais atentos quando vier uma outra oportunidade. Isso nos leva à compreensão de que não possuímos um controle, um domínio absoluto sobre as vicissitudes do mundo contingente. No entanto, o fato de não podermos exercer um completo domínio sobre as contingências não implica que tenhamos de ser vítimas, como se fôssemos arrastados e governados pelos acontecimentos cambiantes da vida.

Assim, tanto o excessivo apego a um aspecto da vida provocado pelo desejo de “permanência” como a atitude de negligência que considera que nada tem valor permanente – uma espécie de relativismo inconsequente – acabam desencadeando uma ignorância que não é senão um sono, uma anestesia, uma inconsciência em relação ao próprio fluxo da potência do Dao.  Por isso, para nos reconectar à potência do Dao, Laozi sugere a prática de acumular a Virtude (积德-jidé) que não é senão a atividade de cuidar de nosso ser, nutrindo-se da energia originária do recém-nascido num processo de amadurecimento consciente.

Assim, trata-se de um cultivo constante, de uma prática disciplinada onde retornamos ao estado de silêncio e meditamos diariamente sobre a inconstância de nossos pensamentos e sentimentos de modo que não mais estejamos apegados a eles. Somente sob essa prática de purificação, sentiremos aflorar pouco a pouco a potência da Virtude Originária cuja força vital fomos perdendo ao longo de nossa existência.

Essa Virtude Originária manifesta a sua eficácia no momento em que agimos com atenção, com a plena consciência do corpo e da mente, sem querermos interferir demasiadamente nas pessoas e nos acontecimentos. Ora, quem age com desatenção e excesso de interferência, obstrui o fluxo natural e provoca distúrbios desnecessários. Uma das principais causas dessa atitude é a ausência de autoconhecimento. Ao invés de nutrirmos e cuidarmos da energia vital para nos autoconhecer, desperdiçamo-la em inúmeras futilidades e aparências ilusórias.

Isso porque nossa mente não sossega enquanto não obtém aquilo que deseja. Por exemplo, quando observamos uma pessoa que a todo momento deseja vencer e derrotar os outros, seja pelo excesso de prepotência, seja pela inflação narcisista, perceberemos o quão prejudicial se torna esse comportamento desmedido. Entretanto, se essa mesma pessoa puder diminuir o desejo de competitividade, agirá com mais Naturalidade e estará desperdiçando menos a sua energia vital.

Com efeito, se agirmos com moderação, pouco a pouco desaparecerão as dificuldades. Estando mais flexíveis, concederemos liberdade de ação ao próprio desenvolvimento natural das coisas. E, agindo no estado de wúwéi, o mundo fluirá conosco num estado harmonioso. Isso porque, cultivando a essência originária do Dao, retornamos à Mãe Nutridora de todas as coisas. É assim que, segundo Laozi, Liezi e Zhuangzi, perduramos numa vida longeva (长久-chángjiǔ), uma vez que, assemelhando-se ao Dao do Céu que não vive apegado a si mesmo, nutrimos uma existência próspera e venturosa. É como se bebêssemos das águas revitalizantes da Fonte Originária.

Nesse sentido, a prática da moderação permite a união do Dao do Homem (人道-réndào) com o Dao do Céu (天道-tiandào). Em última instância, significa que quando nos integramos com a energia espiritual da Naturalidade do Céu, meditamos em harmonia com o Princípio do Dao Constante a tal ponto que desvanecem as ervas daninhas das perturbações causadas pela inconstância humana. Assim se exprime Wang Bi alertando para as ervas daninhas que surgem no terreno do cultivo. (Cf. Wang Bi e Su Zhe, p.196.) Sentimos cada vez mais a abundância de tesouros no domínio de nosso reino interno, e sobretudo, a Constância do Dao será cada vez mais presente na nossa vida. Uma quietude interna e inabalável emanará de nosso coração enraizado no Dao da Vida Perene e da Visão Duradoura (长生久视之道-chángshēngjiǔshìzhīdào).

Por outro lado, na medida em que percebemos que a falta de moderação resulta numa espécie de suscetibilidade a todo pensamento, sentimento e ação, constatamos não só a fragilidade da condição humana, mas, sobretudo, o excesso do seu apego aos hábitos arraigados e às crenças padronizadas. Suponhamos que a nossa mente deseja sempre obter “ganhos”, ao invés de  “perdas”. Assim, ela desconhece que essas oposições como o ganho e a perda não deveriam ser consideradas como acontecimentos bons ou ruins em si mesmos, uma vez que dependem de um contexto de avaliação, de juízos e de crenças mentais subjetivas.

É evidente que se nos movermos exclusivamente para o ganho e rejeitarmos a perda, ficaremos enredados nas malhas ilusórias do pensamento dualístico. Apegados a um lado da existência, desconheceremos que, no fundo, a vida é constituída na sua totalidade por uma variedade de fenômenos, nuances e aspectos múltiplos. É por esse motivo que Laozi sugere o caminho da Iluminação Sutil (微明-wēimíng), a saber, um modo de visão mais ampliado que inclui e aceita as diversas características do mundo.

Quando se deseja retrair, é preciso expandir.
Quando se deseja enfraquecer, é preciso fortalecer.
Quando se deseja rejeitar, é preciso enaltecer.
Quando se deseja retirar, é preciso ofertar.

Eis o que é a Iluminação Sutil.

Suavidade e brandura vencem força e rigidez.
Um peixe não deve sair das profundezas das águas.
Armas afiadas não devem ser exibidas aos homens

Laozi, cap.36

Nesse sentido, alcançando a Iluminação Sutil, compreendemos que todos os fenômenos seguem um movimento cíclico e dialético (retração/expansão, enfraquecimento/fortalecimento) e que, portanto, esses aspectos, ainda que opostos entre si, pertencem intrinsecamente à própria dinâmica da totalidade da vida. Afirmar um aspecto em detrimento do outro criaria uma visão parcial, fragmentada e equivocada. Penso que um dos grandes desafios da atualidade consiste justamente em enxergarmos essa relação de complementaridade dos opostos, praticando aquilo que o filósofo Zhang Mo Sheng chama de “observação aguçada” (细细体察-xìxìtǐchá) (Wang Bi e Su Zhe, p.130.) através da qual percebemos os fenômenos sutis da realidade com as suas feições e nuances pouco discerníveis.

É essa observação que nos conduz ao equilíbrio da moderação e a uma espécie de contemplação mais abrangente da realidade. Não se trata apenas de compreender que, para atingirmos algum resultado Y, deveríamos praticar uma determinada ação X. Tal concepção de ação está fundamentada num cálculo de causalidade estratégica onde deliberadamente agiríamos com vistas à obtenção de certos resultados premeditados. É evidente que certas ações intencionais podem ser consideradas num sentido benéfico, porém, quando excessivamente motivadas, podem acarretar efeitos prejudiciais. É por isso que, se as nossas ações forem exclusiva e excessivamente condicionadas por um certo utilitarismo, os perigos que daí resultam são o apego, o enrijecimento e a perda da Naturalidade do wúwéi e, por consequência, a atitude ostensiva, externa e artificiosa, o que mostra o quão longe ainda essa atitude encontra-se diante da percepção da totalidade.

Por isso, quando nos aprofundamos na essência da Naturalidade – tal como um peixe que se abriga nas profundezas das águas – , abraçamos uma visão mais complexa do mundo e evitamos as ações unilaterais. Entendemos que os fenômenos seguem um curso de ascensão e declínio: após atingir o seu ápice, cada coisa retorna ao ponto contrário e inicial. Nesse sentido, não seria muito sensata uma atitude de apego e de enrijecimento diante da existência. Um dos perigos desse unilateralismo ocorre naquelas atitudes rígidas decorrentes da arrogância. Ora, a arrogância é resultado da falta de moderação, efeito daquilo que os taoístas consideram como uma ação forçosa e artificial que, na sua desmedida, excede e interfere de modo inapropriado.

É por isso que toda ação imoderada viola o princípio da Naturalidade e incorre no perigo da Artificialidade. A própria Natureza é sábia e nos revela que as coisas estão sempre passando pelas constantes mutações e alternando-se numa regularidade cíclica: as coisas ora contraem-se, ora expandem-se, ora enfraquecem-se, ora fortalecem-se. É compreendendo esse ritmo natural e buscando o desapego aos extremos que evitaremos a interferência desnecessária no fluxo da ordem do mundo e simplesmente corresponderemos à natureza de cada coisa (唯因物之性-wéiyīnwùzhīxìng) (Wang Bi e Su Zhe, p.120.) Se formos atentos para não sairmos de nossos limites (um peixe que não sai das profundezas das águas), saberemos agir de acordo com a situação sem corrermos o perigo de cometermos uma ação precipitada e imprudente.

Chiu Yi Chih (邱奕智) (clique aqui)
Professor de filosofia chinesa clássica no Centro Cultural de Taipei (São Paulo) e em cursos online. É chinês nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro. Filósofo, tradutor, poeta, mestre em Filosofia Antiga Grega (USP), graduado em Letras Clássicas (Grego Clássico-Português/USP) e praticante de Tai-Chi. Publicou um livro de poesia “Naufrágios” (Multifoco-2011), um livro de ensaios filósoficos e poemas “Metacorporeidade” (Córrego-2016), “Caminho taoísta” (2021) e a tradução dos clássicos “Dao De Jing” (Mantra-2017), “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte da guerra” de Sun Tzu em versão bilíngue comentada. Em breve publicará o seu novo livro de poesia “Osso Vazio”. Atualmente vem pesquisando as obras de Zhuangzi, os Sutras do Budismo Chan e dando cursos de taoísmo online

 

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por Anders Noren

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