
O icônico personagem Batman, criado pelo escritor Bill Finger e o artista Bob Kane, no distante ano de 1939, é o retrato de um mundo que já não existe mais. A “América” de então, vivida por Finger e Kane, era uma sociedade que se recuperava da crise de 1929. A economia ainda vivia sob os estímulos do “new deal” de Roosevelt, mas o desemprego recuava. A mobilização coletiva de trabalhadores em sindicatos e cooperativas era uma realidade. A economia do país era essencialmente industrial, e o seu peso frente ao setor financeiro era descomunal.
Existia a preocupação da elite política com a possibilidade concreta de um conflito militar de grandes proporções na Europa (o que acabaria ocorrendo em setembro do mesmo ano), mas o “isolamento” estadunidense dos problemas externos induzia a população a uma espécie de solene ignorância do perigo eminente que o mundo vivia naqueles dias. Nesse universo, a idealização do industrial como o realizador de coisas impossíveis e a crença salvadora de uma tecnologia futurista ajudaram os criadores na composição de “Batman”.
Existe aqui, uma relação direta (e ignoro saber se intencional ou não) com a obra de Ayn Rand, a filósofa e escritora russo-estadunidense, autora do “Movimento Filosófico” do “Objetivismo”, que pregava a superioridade do capitalismo ao libertar as amarras morais do homem, fazendo com que este persiga, unicamente, o seu gozo e satisfação pessoal. O Estado, portanto, deveria ser uma entidade quase abstrata, destinada a proteger o cidadão e seus respectivos bens. Para subsistência do “monstro”, as pessoas contribuiriam “optativamente”, com doações ou algo do tipo.

Ayn Rand escreveu livros onde ela elabora e romantiza esses ideais, como “The Fountainhead” e, principalmente, “Atlas Shrugged” (traduzido no Brasil como “Quem é John Galt?”, posteriormente renomeado como “A revolta de Atlas”), onde ela elege empresários ambiciosos e corajosos como heróis e símbolos da sua “filosofia”. Dagny Taggart, vice-presidente e responsável pelas operações das linhas ferroviárias Taggard, e Hank Rearden, fundador das Aços Rearden, enfrentam obstáculos de toda ordem ao desafiar as absurdas leis e imposições dos “usurpadores”, burocratas “socialistas” de Washington que perseguem a inovação, o empreendedorismo e a liberdade.
Durante o livro, enquanto a dupla Taggard-Rearden luta pela sobrevivência de seus negócios, uma série de intelectuais, empresários e artistas abandonam suas atividades, supostamente convencidos pelo misterioso “John Galt”, um vingador misterioso que planeja paralisar a economia e a produção intelectual através de um levante silencioso das classes capitalistas, comprometendo assim o “absolutismo socialista” do poder central. No livro, a ambição é a força motriz da liberdade e da própria humanidade. Um personagem, Antonio D´anconia, faz uma declaração panfletária e discursiva sobre o poder do dinheiro, até hoje usada por grupos que estudam e celebram a visão monetarista/liberal da economia como plataforma de ideias fundamentais para qualquer sociedade “livre”.

Bem, por que fiz esse longo preâmbulo? Porque Batman, de certa maneira, é o “Galt” da DC. Ele foi criado num momento imediatamente anterior à segunda grande guerra, onde a mobilização social de Roosevelt foi substituída, gradativamente, pelos soluços patrióticos de um país em guerra. E a guerra, de certa forma, é a falência da política (ou sua extensão, segundo Clausewitz). Logo, a incompetência política da burocracia mundial (alimentada ideologicamente por empresários e intelectuais, em especial no pós-guerra) só pode ser devidamente combatida por uma vigilante, que ignora os passos morosos do Estado (ou da burocracia estatal). A democracia, a partir de então, é encarada pela plutocracia mundial como uma ideia perigosa (ela pode promover ideais e objetivos contrários aos seus interesses), ainda que necessária e fundamental para justificar suas ações mundo afora.
A proposta de Batman, portanto, é o típico radicalismo “Randniano”. Assim como John Galt, figura mítica que agia nas sombras para demolir o poder centralizador e “socialista” de Washington, o homem-morcego utilizava dos mesmos princípios para combater o crime. E dane-se o Estado de direito. No Brasil turbulento pós-2013, a figura de Batman foi a síntese perfeita do vigilantismo radical, anti-Estado e anti-causas sociais, irradiada pela mídia corporativa, assim como pelas falanges reacionárias nas ruas. Pessoas vestidas de Batman exercitavam sua loucura, empoderadas pelos símbolos e ideias do homem-morcego. Até juízes aceitaram, com certo regojizo, “o fardo” vingador.
Além disso, existe muito de Wayne nos personagens Taggard e Rearden. A mesma certeza absoluta na capacidade do individuo em construir projetos complexos, radicais e revolucionários. Personagens igualmente infelizes, solitários e obsessivos. Batman é, acima de tudo, um personagem atávico. Seu personagem sombrio e “vigilante” era compensado, ao menos, pela “ética do capitalismo empreendedor”, legado do seu pai. Ele se torna um capitão de indústria, e o vapor de suas empresas empregava pessoas e construía coisas. Retrato de um EUA industrial e empreendedor.
Hoje, o sistema financeiro é a indústria dominante. Fosse real, o grupo Wayne estaria produzindo seus produtos no México ou na China. Seu grupo empresarial tornar-se-ia gradativamente desimportante. A coleção e atributos morais dos empresários-heróis de Rand estão em Batman, menos o ímpeto em desafiar o governo, ainda que o gesto de Wayne seja, ao seu modo, cheio de escárnio pelo poder central. Nos filmes Batman de Nolan, por exemplo, Wayne é ressignificado como um yuppie, ainda que o tom trágico seja a marca do personagem no arco dramático que se desenvolve nos três filmes do diretor.
As corporações Wayne aparentam ter atravessado a fronteira da indústria, demonstrando um hibridismo de modelos de negócio entre o engenho e as finanças. Uma espécie de G.E. do universo DC. Até porque, só o mercado financeiro forneceria a contínua máquina de valorização de ativos que suportaria a fortuna (e os custos da persona Batman) de Wayne. Um amigo, “filosofando” sobre o personagem, chegou numa conclusão simples, mas profundamente significativa: Batman é um bilionário que enfrenta, sozinho, a criminalidade em Gotham, cidade empobrecida que se transforma em centro de criminalidade. Criminalidade que, em tese, cresce e intensifica-se pela concentração excessiva de renda, em última instância, nas mãos de gente como Wayne. Logo, o “mal” de Gotham está em Wayne. Que dedica a vida a combatê-lo. Tem algo de Tragédia nessa história. E de farsa também.
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2016/05/20/batman-uma-invencao-de-ayn-rand-entre-a-tragedia-e-a-farsa/
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