“O futebol latino-americano é o subterfúgio das inúmeras crises da região”, Matheus Fuscaldo Bellé e Fabiano Godolphim Neme

O estádio Nacional, um dos maiores símbolos do futuebol chileno, serviu de espaço para a execução de muitos priosioneiros políticos e ativistas contrários à ditadura de Pinochet. Crédito: Trivela.

Não há dúvidas que o futebol é um dos esportes  mais amados e populares em praticamente todas as regiões do mundo. Porém, na América do Sul e Latina, a relação entre esta modalidade esportiva e seus fãs vai mais além. A conexão do torcedor com o seu clube do coração é levada ao nível muito vezes de identidade, de pertencimento, de ser integrante daquela “família” futebolística. Ao terem conhecimento desta situação, as forças políticas e econômicas exploram os meandros deste vínculo apaixonado para garantir seus interesses e objetivos práticos de lucro, ou de influência política. Em “Condor F.C. – O uso político do futebol nas ditaduras da América Latina”, lançado pela editora De Letra Livros e escrito pelo historiador, arqueólogo (FURG/UFMG), pesquisador e professor Matheus Fuscaldo Bellé e pelo advogado e desenvolvedor de jogos analógicos Fabiano Godolphim Neme, temos o primeiro resultado de uma longa pesquisa em arquvios e documentos históricos sobre o uso político do futebol pelas ditaduras da região.

Através do simples relato de fatos históricos, vamos relembrando momentos de nosso passado sombrio mais recente no Brasil e em países irmãos. O quadro final é uma mostra clara que a política e o futebol, ao menos na América Latina, estão intimamente relacionadas e que a situação de região perfiférica no sistema capitalista, dominado por europeus ocidentais e EUA, também se reflete no esporte mais querido pelos que nasceram e cresceram por aqui. Estas e outras questões são debatidas nesta entrevista exclusiva que os autores concederam à Revista Intertelas e que você confere abaixo.

Clique na foto para adquirir o livro. Crédito: Twitter Futebol Café.

Como surgiu a ideia de pesquisar o tema sobre o uso político do futebol nas ditaduras de nossa região? 

A ideia surgiu da ausência de bibliografia a respeito do tema no Brasil. Deparamos-nos com o assunto a partir de um documentário produzido pela ESPN Brasil chamado “Memórias do Chumbo – o futebol nos tempos do condor”, e, ao buscar um aprofundamento na matéria, encontramos poucos livros, e que tratam o tema de forma esparsa. Assim, surgiu a ideia de compilar as principais histórias onde o futebol e a ditadura estão relacionados, daí o livro. O objetivo principal foi comunicar de forma simples e didática temas de importância crucial para a história do futebol e da política da América do Sul. Tramando esses dois fios de forma interessante para os amantes de um, ou de outro, ou de ambos.

Atualmente, no período democrático, o futebol continua a ser uma ferramenta de uso político importante? Se sim, como as diferentes forças políticas fazem uso dele na opinião de vocês?

O futebol, pela importância que tem no Brasil e no resto da América Latina, sempre vai ser um elemento relevante dentro da política, como todo o movimento de massa. O seu uso político hoje se dá em duas frentes: uma dentro do campo e outra fora dele. Exemplificamos com dois exemplos, mas sempre lembrando que ambos são ambientes de disputa política e narrativa. Dentro do campo é mais evidente, com o presidente da república entregando a taça de campeão brasileiro para o Palmeiras e tirando foto com a seleção brasileira após a conquista da Copa América de 2019.

Fora do campo existe o trabalho silencioso dos coletivos de torcedores que fazem do ambiente do futebol um microcosmo da nossa sociedade, em que a arquibancada é alvo de constante disputa, em que se busca, por exemplo, extinguir cânticos racistas e homofóbicos das torcidas organizadas para, assim, realizar um mínimo de transformação social usando o futebol como catalisador.

Crédito: Twitter DaLetra.
Crédito: Cafezinho com história.

Em um sistema capitalista, o futebol é bastante utilizado também para promover interesses econômicos. Ele em si é uma indústria que também tem seus próprios interesses. Como podemos observar a utilização das forças econômicas, assim como dos interesses da própria indústria do futebol, na sociedade atual? 

Entendemos que não só interesses econômicos, mas valores também. O sistema capitalista permeia as mais variadas camadas de uma sociedade e embute nelas aquilo que entende ser necessário para perpetuar-se. Não é à toa que podemos ver os reflexos das noções de consumo irrestrito, individualismo, meritocracia e outros, dentro do futebol. São pensamentos que balizam o mundo capitalista e que estão latentes no futebol sul-americano até hoje. Quantas crianças em situação de pobreza ainda sonham em virar jogadores de futebol e resolver todos os problemas de suas famílias? Quantas chegam lá?

A meritocracia ainda serve de parâmetro para aqueles que tentam alcançar as grandes cifras que o futebol promete, tão desproporcionais que não fazem sentido algum em países que, ainda hoje, tentam combater a fome. No entanto, a realidade é desigual, como é na sociedade capitalista, no relatório de 2016 da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) temos que 80% dos jogadores de futebol no Brasil ganhavam até mil reais mensais, 96,08% não passavam dos cinco mil reais mensais e os maiores salários representam apenas 2% dos atletas. Retiramos esses dados de desigualdade de renda e transportamos para o resto da sociedade: “bingo!”.

Crédito: https://frases.tube/

No capítulo “Pinochet x Brejnev”, observamos a dimensão que o futebol pode ter no contexto internacional. O boicote dos soviéticos à equipe chilena de Pinochet deixou um registro claro na história, no período da Guerra Fria. Os EUA sempre tiveram grande influência política em nossa região. A que ponto podemos melhor mensurar a influência das duas grandes potências estrangeiras no mundo do futebol sul-americano na época? E como podemos pensar atualmente a questão no mundo pós-guerra fria de hoje? 

Fabiano: Vou dividir minha resposta em duas partes, a primeira situada nos anos de chumbo e a outra hoje em dia, mas não usando necessariamente a influência dos EUA, mas sim do núcleo do capitalismo, englobando a América do Norte e a Europa ocidental, pois o fato da FIFA ser sediada em Zurique é fundamental no caso. Enfim, durante a ditadura podemos perceber a influência do Norte Global na forma como o Estádio Nacional foi vistoriado pela FIFA e considerado apto a receber o jogo de volta da repescagem da Copa de 74 entre Chile e União Soviética.

Os vestígios da utilização do estádio como campo de prisioneiros eram claros na época, inclusive pela presença de alguns presos políticos que ainda não tinham sido remanejados para outros locais. Hoje em dia a presença do Norte Global pode ser encarada até como uma forma de neocolonialismo, com clubes europeus tendo centros de prospecção e captação de atletas em diversos países do sul global, e também com clubes tornando-se verdadeiras franquias, como é o caso do Bragantino, cujo símbolo tradicional foi substituído pela marca do energético Red Bull e pelo Montevideo Torque, adquirido pelo grupo City, de Manchester.

Matheus: O ponto mais relevante e que expressa essa influência foi a conflagração dos diversos golpes por toda a América Latina, por óbvio, mas nesse caso não apenas os golpes de Estado, se não, os golpes às instituições civis mais diversas. O plano dos EUA de garantir sua influência por aqui em contraponto à influência da URSS deu-se na forma da ingerência, a mais clara que temos é a mudança dos rumos políticos de diversos países através de golpes militares. No decurso deles, o Brasil e outros países também sofreram golpes nas instituições educacionais, nas instituições financeiras e nas suas instituições esportivas. As trocas de comando trocaram também valores e exigências. O futebol latino-americano sofre alterações diretas por conta disso, pois é o subterfúgio das inúmeras crises na América Latina, para alguns serve de bunker, para outros como arma, mas uma coisa é sempre certa, ele é um dos termômetros da complexa sociedade sul americana.

O estádio Nacional criou um museu em memória das vítimas da ditadura. Um dos maiores símbolos do futuebol chileno serviu de espaço para a execução de muitos priosioneiros políticos e ativistas contrários à ditadura de Pinochet. Crédito: Trivela.

No livro é mencionado a ideia de identidade latino-americana. Na opinião de vocês, como a questão de formação de uma identidade regional reflete-se no futebol? 

O latino-americano possui uma relação muito única com o futebol. Ao invés da relação marca-cliente, tradicional da Europa há no mínimo 20 anos (e, em certa medida, nos EUA, mas relativamente a outros esportes que não o futebol), o latino tem com o seu clube uma relação de pertencimento, e isso acaba refletindo na formação dessa identidade regional. E essa relação de pertencimento acaba aproximando o latino-americano do seu clube de uma forma muito particular, e isso afeta o modo como ele se relaciona com seus pares e com seus rivais. Ainda que essa conexão esteja sendo dilapidada pela influência de inúmeros fatores elitizantes, como a arenização, o aumento dos valores das camisas entre outros. Esse é um efeito que recebe ampla resistência daqueles que mais fazem o futebol acontecer, a torcida.

Como ocorre na sociedade de classes, no futebol também há a diferença de poder e atuação entre os times do Cone Sul e dos demais países da América do Sul, América Central e Caribe. Qual a análise de vocês sobre esta situação? 

Aí temos duas questões. A primeira é que o futebol na América Central é extremamente desenvolvido, com clubes que rivalizam com qualquer gigante sul-americano em questão de estrutura, torcida e orçamento. Já no Caribe, o futebol não tem a mesma importância que tem aqui, na América do Sul, que acredito ser o grande ponto a ser debatido. O futebol sul-americano pode ser dividido em duas fases: antes e depois de 1995. Nesse ano, o jogador Jean-Marc Bosman entrou na justiça contra seu clube, o Standard Liége, para poder se transferir para o RFC Liége. Esse julgamento mudou o futebol para sempre, pois com ele caiu a restrição de quantos jogadores estrangeiros poderiam ser contratados por um clube europeu.

Com isso, os clubes mais ricos da Europa podiam aliciar e contratar jovens talentos da periferia do capitalismo, principalmente da América Latina, e isso afetou profundamente o desempenho dos clubes fora do Cone Sul. Existe um exemplo muito significativo disso, que é o centro-avante uruguaio Luís Suárez. Buscando as estatísticas do jogador, vemos que ele disputou 159 partidas pelo Ajax, 133 pelo Liverpool e 283 partidas pelo Barcelona. Todos gigantes europeus. Já pelo seu clube de formação, o Nacional do Uruguai, o Suárez disputou apenas 34 partidas. Leo Messi foi para a Europa sem nunca ter jogado profissionalmente na Argentina. Temos exemplos assim por todo o hemisfério sul, com jovens talentos sendo levados para a Europa muito cedo, e apenas clubes de massa, como Flamengo, Corinthians, e River Plate têm a capacidade financeira de manter seus jogadores por mais tempo ou de repatriá-los posteriormente.

A primeira faixa pela anistia aberta publicamente foi num jogo do Corinthians e Santos, em 1989 no Morumbi. Crédito: Arquivo O Globo/Brasil de Fato.

A atuação dos militares durante o período da Ditadura foi bastante diferente entre os países da região, mas como o livro de vocês aponta, todos usaram do futebol como ferramenta política e de manipulação. Atualmente, especificamente sobre a atuação dos militares no Brasil e, se possível dizer, em outros países da região, como ela se dá? O relacionamento dos militares com o futebol continua sendo significativo?

Acreditamos que o único militar que busca se aproximar do futebol atualmente é o Bolsonaro, mas com uma abordagem completamente diferente. Os militares nos anos da Operação Condor usavam o futebol basicamente de duas formas: como ferramenta de unificação nacional (especialmente Médici e Pinochet) e como propaganda para a comunidade internacional do “sucesso” dos regimes (como por exemplo Videla e a junta militar que comandava o Uruguai no início dos anos 80). Bolsonaro não.

Bolsonaro usa o futebol como ferramenta semiótica, para passar uma imagem de simplicidade e humildade que não é verdadeira. Existe uma foto dele que simboliza muito isso, que foi tirada dele e de seus ministros no Planalto, em que ele está de chinelo, calça de moletom, uma camisa falsificada do Palmeiras e um paletó (que inclusive acredito que ele pegou do então ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni). No caso, o ênfase que quero dar é ao fato da camisa ser falsificada. Mas enquanto ferramenta de uso político por militares, o último caso realmente foi do Pinochet com o Colo Colo, no início dos anos 90.

Como atualmente os grupos de pesquisas acadêmicos, a mídia e outros interessados estão abordando esta questão do uso do futebol como ferramenta política durante as ditaduras? Há interesse sobre assunto, ou ainda há certo receio, ou desinteresse em abordar a questão? E como a indústria do futebol, dos clubes portam-se na divulgação deste passado sombrio? 

O uso político do futebol é abordado academicamente com certa frequência, através de monografias e artigos, dentre os quais destaco a produção da historiadora Lívia Gonçalves Magalhães, cuja dissertação de mestrado se transformou no excelente livro “Com a taça nas mãos – sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina”. Mas a produção dela sobre o tema não se resume a essa monografia, ela tem artigos excelentes produzidos, dentre os quais vários foram fontes para o Condor FC. Sobre a atuação dos clubes hoje em dia, podemos destacar quatro frentes: a chilena, a argentina, a uruguaia e a brasileira. No Chile, até 2015 o Pinochet ainda era presidente de honra do Colo Colo, até que uma votação com presença recorde de participação de sócios o removeu desse posto.

No Uruguai, o Peñarol está iniciando um processo de exclusão do quadro social e do conselho deliberativo de pessoas envolvidas com o Terrorismo de Estado dos anos de chumbo. Na Argentina, sempre no dia da memória, os clubes manifestam-se de forma massiva contra os anos de chumbo, com mensagens fortes e diretas. Já no Brasil, no final de março/começo de abril, uns poucos clubes manifestam-se, mas sempre de forma tímida e não fazendo oposição direta aos anos da ditadura, mas sim restringindo-se a frases como “democracia sempre” ou semelhantes. Acredito que isso se dá pela diferença entre as transições democráticas desses países e a anistia a torturadores que houve aqui no Brasil.

Crédito: Amazon.

Sabemos que no Brasil e em outros países de nossa região e no mundo, os clubes de futebol têm vínculos com o crime organizado. Da mesma forma que sabemos que a indústria do futebol é bastante desigual e encobre crimes dos mais diversos tipos. Levando em conta o histórico que o livro propõe-se a divulgar, como percebem esta situação? 

Acreditamos que o caso mais notório em que o futebol relacionou-se com o crime organizado na América Latina é a ligação entre os clubes colombianos e o narcotráfico. Se pegarmos só os anos 80 e 90, podemos perceber que a Colômbia teve um time na final da Libertadores da América pelo menos 10 vezes. Esse tipo de episódio demonstra que não se separa interesse econômico e político do fazer futebol, eles estão amalgamados de tal forma que sofrem também disputas de poderes econômicos paralelos e são passíveis de serem influenciados pelos mesmos.

O fazer futebol sempre é direcionado e tem motivação, quanto maior a quantia financeira que um clube movimenta, menor a chance da torcida e o desempenho esportivo serem a única finalidade. No entanto, esse terreno possui inúmeros fatos ainda a serem pesquisados. Sobre o Brasil – citando nosso país por conhecermos melhor os casos mais recentes – poderíamos fazer um livro inteiro só com os casos de acerto de resultados, denúncias de lavagem de dinheiro através das associações, financiamentos e facilidades de clubes e empresas relacionadas aos seus cartolas. Se pegarmos historicamente, casos como o de Castor de Andrade e o Bangu, vamos mais longe ainda mapeando essa intimidade do futebol e o crime organizado.

Quais os planos futuros de vocês para esta obra? Vão seguir com novas pesquisas, ou com a ampliação para incluir outros países da região?

A pandemia afetou diretamente a produção do Condor FC. Deixamos de buscar histórias pelas restrições que foram necessárias para tentar conter o vírus, e não descartamos que essas histórias venham a aparecer no futuro, de uma forma ou de outra. Talvez em um novo livro, talvez numa nova edição.

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por Anders Noren

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