
Os Estados Unidos, segundo sua própria cúpula política, está enfrentando um momento de “inflexão” no qual a própria “democracia” está à beira do precipício, e com isso poderia fundir-se o farol do mundo livre (que desastre?). Parte do deterioramento da democracia estadunidense foi documentada na última audiência pública do Comitê de Investigação sobre o 6 de janeiro que deixou claro que um presidente impulsionou um plano premeditado para reverter os resultados de uma eleição federal, incluindo uma tentativa de um golpe de Estado.
Vídeos revelados publicamente pela primeira vez na semana passada pelo comitê oferecem cenas que todos vimos antes – de uma cúpula política evacuada por serviços de segurança a um tipo de bunker em algum lugar secreto, enquanto a turba destrói o palácio dos políticos – mas em países do chamado terceiro mundo, não na capital do autoproclamado líder do “mundo livre”. A liderança legislativa de ambos os partidos foi evacuada ao que agora se sabe para o Fort McNair, nas periferias da capital, enquanto o próprio vice-presidente estava em um quarto seguro debaixo do Capitólio e os fanáticos do presidente, que observava tudo em sua televisão na Casa Branca, ameaçavam executá-los.
A conclusão do comitê é que se o autor intelectual do delito, Trump, não for obrigado a prestar contas, estas cenas serão repetidas e, com isso, poderia marcar o fim deste sistema. Mas vale assinalar que a grande maioria de candidatos republicanos às eleições intermediárias de novembro expressaram apoio à “grande mentira” de Trump de que a eleição de 2020 não foi legítima, reportou o New York Times. O sistema oficial está bastante decomposto.
Assalto da agenda neoliberal
Mas tudo isto não é a “causa de fundo” da deterioração da democracia estadunidense. A “democracia” aqui foi assaltada pela agenda neoliberal aplicada por ambos os partidos durante os últimos 40 anos. Os dados são igualmente dramáticos e muito mais nocivos à democracia que o assalto ultradireitista ao Capitólio.
Só para mencionar alguns: houve uma transferência de aproximadamente 50 trilhões de dólares da riqueza dos 90% “de baixo” ao 1% mais rico durante as últimas quatro décadas, calcula a RAND Corporation. A remuneração de executivos acresceu 1.460% desde 1978 e agora ganham 399 vezes mais que o trabalhador típico de hoje em dia (em 1978, essa equação era de 50 a 1), segundo o Economic Policy Institute.
Hoje em dia, três homens têm a mesma riqueza que a metade mais pobre dos estadunidenses (160 milhões de cidadãos); os 5% mais ricos dos estadunidenses concentram 2/3 da riqueza nacional. Desde que explodiu a crise da covid-19 há três anos, a riqueza dos multimilionários incrementou-se em mais de 50%, a quase $5 trilhões, enquanto que o incremento da dívida dos consumidores nos 90% “de baixo” registrou um incremento sem precedentes para chegar a $300 bilhões, reportou o Institute for Policy Studies.
“Agora temos maior desigualdade de ingresso e de riqueza que em qualquer momento nos últimos cem anos”, disse o senador Bernie Sanders, sublinhando que hoje é mais certo o que disse o reverendo Martin Luther King Jr. nos 1960, que “temos que reconhecer que não podemos resolver nossos problemas hoje até que se leve a cabo uma redistribuição radical do poder econômico e político” nos Estados Unidos.
O país é, ou está para ser, uma oligarquia. É a causa de fundo do deterioração cada vez mais acelerada do que resta dessa democracia. Diante disso, são a continuação das lutas altermundistas do início deste século – como os Indignados, Occupy Wall Street e as greves gregas – a onda de rebeliões trabalhistas, que poderiam estar ressuscitando o movimento sindical estadunidense e são algumas das verdadeiras forças democratizadoras que ainda poderiam resgatar a esse país.
Fonte: Texto publicado originalmente em espanhol no site La Jornada e traduzido pelo Diálogos do Sul.
Link direto: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/mundo/77219/neoliberalismo-vigente-ha-40-anos-nao-trump-e-responsavel-por-ruina-da-democracia-nos-eua
David Brooks
Correspondente do La Jornada em Nova York
Tradução: Beatriz Cannabrava
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