Especialistas alertam para a falta de transparência do plano do Japão em despejar material radioativo no oceano Pacífico

Pessoas se reúnem para protestar contra a decisão irresponsável do governo japonês de começar a liberar águas residuais contaminadas com energia nuclear em frente à residência oficial do primeiro-ministro japonês em Tóquio, Japão, em 22 de agosto de 2023. Crédito: Feng Wuyong/Xinhua.

Em outubro 2023, o Japão lançou novamente o seu controverso plano de despejar a água radioativa purificada, resultado do acidente nuclear em Fukushima, no oceano Pacífico. A decisão tem provocado protestos por parte dos países vizinhos, ativistas e cientistas. A Tokyo Electric Power (TEPCO), operadora da central nuclear de Fukushima-Daiichi, foi a responsável por realizar o processo de purificação da água radioativa, dizendo ter eliminado os elementos mais nocivos aos organismos, exceto o Trítio.

Ela foi também a empresa que estabeleceu o plano de despejo que recebeu o aval da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Apesar da presença da AIEA, muitos especialistas continuam reticentes sobre a dose aumentada do Trítio após a água radioativa ser despejada no oceano, assim como há dúvidas se os demais elementos foram realmente eliminados, já que, segundo fontes entrevistadas e pesquisadas pela Intertelas, todo o processo não teve a transparência necessária para deixar todas as partes, que foram impactadas pela decisão japonesa, tranquilas.

Conforme o especialista, pesquisador e professor associado do Departamento de Oceanografia Física, Química e Geológica do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP), Rubens Cesar Lopes Figueira, o maior problema do Trítio, que é um isótopo de hidrogênio, não é a sua ingestão e sim a dose. De acordo com ele, este tem uma meia vida biológica pequena, mas é difícil de ser eliminado e terá a sua dose aumentada, quando o material for jogado ao mar.

Em 12 de junho de 2023, pessoas protestam em Seul, Coreia do Sul, contra a planejada descarga de água contaminada com energia nuclear pelo Japão. Crédito: Wang Yiliang/Xinhua.

Porém, os japoneses trabalharam com a noção de diluição do Trítio no Pacífico, já que o tamanho do oceano ajudaria no processo de eliminação. Eles ainda disseram que eliminaram, com o processo de purificação da água, os outros isótopos mais nocivos ao organismo humano, como o Césio -137 e o Plutônio -239. Ao levar em conta o contexto do Japão, não sei se existiriam outras saídas para o país. Se existissem, de repente, seriam caras demais, e o aval da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU consolidou ainda mais esta decisão deles. Contudo, a maior preocupação dos países vizinhos é: os mesmos responsáveis por Fukushima, são os mesmos que estão fazendo os relatórios de fiscalização e que estão liberando este material no oceano”, explicou o especialista.

Figueira ainda acrescentou que, para além da dose aumentada do Trítio, existe a dúvida quanto aos reais níveis dos demais elementos que estão sendo despejados no mar. “O correto seria ter uma fiscalização independente, com a participação de equipes dos países vizinhos, para que qualquer dúvida fosse desfeita. Uma boa ação seria um fórum para discutir esse tipo de liberação, porque, de qualquer maneira, trata-se de uma dose dada aos organismos que vão ser consumidos. Aquela é uma região que é fronteiriça com outros países, como a China, a Coreia e outros. A grande dúvida é se essa água está, realmente, totalmente limpa. Por isso, eu recomendaria constante monitoramento para todos que compartilham aquela área”, disse.

O professor ainda esclareceu que a falta de transparência é um dos maiores problemas relacionado à radioatividade. “A partir do momento em que eu não permito que outros façam esta fiscalização, isso pode ser um indicativo de que há um problema. Por que não chamam os países vizinhos para acompanhar todo o processo de purificação e liberação deste material radioativo? Quando há uma contaminação, é responsabilidade de todos, no mundo, informar claramente e deixar que outros façam as análises também. Agora, se eu sou produtor, seja da indústria química que for, eu mesmo faço as análises do material, e eu mesmo libero, quero apenas tornar o processo mais fácil para mim. Aos demais grupos sociais e países resta apenas esperar que o meu relatório seja confiável e monitorar a situação. E junto a isso, podemos pensar no lobby das empresas de energia nuclear. Portanto, a preocupação da China, assim como de outros países é justificável”, concluiu.

Na mesma linha, em agosto deste ano, o médico costarriquenho, copresidente da Associação Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear (Prêmio Nobel da Paz em 1985) e membro da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN) (Prêmio Nobel da Paz em 2017), Carlos Umaña, em entrevista à jornalista Milagros Asto Sánchez, publicada pelo jornal peruano El Comércio, um dos tradicionais jornais do país, há várias questões que nem a TEPCO, nem o órgão nuclear da ONU conseguiram responder. O ativista lembrou que um fórum organizado pelas ilhas do Pacífico, onde um painel independente de cientistas foi contratado, levantou sérias dúvidas sobre o lançamento das águas de Fukushima no mar.  “Por exemplo, poucos tanques contendo essa água radioativa foram amostrados, coisas como o lodo deixado no tanque ou vários outros pontos em relação à contaminação ambiental não foram levados em consideração”, afirmou o especialista.

Umaña ainda contesta a falta de disposição dos japoneses para eliminar as dúvidas dos opositores ao plano e a participação da AIEA na questão. “O Japão não mudou em nada a sua posição e o problema é que estão amparados pela AIEA, que não é imparcial porque é uma organização nuclear, que promove a energia nuclear. Embora o Fórum das Ilhas do Pacífico tenha encomendado um estudo independente a cinco cientistas e várias outras organizações científicas tenham recomendado contra este despejo, o Japão insiste que não tem consequências”, explicou o também médico.

Para ele, os efeitos da radiação no mar foram subestimados, já que os isótopos não foram medidos adequadamente. Umaña ainda enfatizou que a contaminação transcenderá a fronteira marítima do Japão e se estenderá a todas as áreas do Pacífico, incluindo também o continente americano. “Sobre o acidente de Fukushima se fala que já existem alimentos contaminados por radiação. E essa contaminação radioativa se traduz em maior incidência de doenças como câncer, doenças crônicas como artrite, doenças cardiovasculares e, além disso, maior possibilidade de malformações congênitas”, ressaltou.

O ativista ainda argumentou que considera tratar-se de riscos que não estão sendo levados em conta e questionou o rigor dos estudos realizados para a concretização do plano japonês. Conforme outros especialistas consultados pelo jornal peruano, é difícil falar dos riscos na população porque a radiação não é suficientemente elevada. Porém, o nível de radiação nas populações de peixes da região pode ser medido, o que nos permitiria extrapolar a possibilidade de doenças que ocorrem devido a esta radiação.

Há muitas preocupações em relação a estes relatórios que não são cientificamente aprofundados e quando falamos de radiação e da contaminação isso tem que ser muito preciso e não está acontecendo neste caso”, afirmou à jornalista Sanchez. Ele ainda finalizou a entrevista com um alerta: “O oceano Pacífico é vasto, por isso não é esperada uma poluição muito elevada. Contudo, com o acidente de Fukushima, já foram detectados níveis de radiação nas costas da Califórnia. Se esta contaminação continuar, pode haver maior teor de radiação no Oceano Pacífico que acabe afetando as costas dos EUA e também da América Latina”, enfatizou Umaña.

Para Ronnie Lins, consultor brasileiro da Academia Chinesa Contemporânea, neste contexto de desequilíbrio ambiental, as medidas que o Japão adotou são nocivas e vão contra a lógica de como se deve proceder. “Trata-se de uma questão complexa e que não houve a transparência que deveria haver. Era preciso fazer uma consulta com os demais países para averiguar, de forma conjunta, o impacto que isso poderia ter tanto no meio ambiente, como também na economia da região”, salientou.

9 comentários em “Especialistas alertam para a falta de transparência do plano do Japão em despejar material radioativo no oceano Pacífico

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  1. Absurda essa situação… os resíduos podem ser enterrados, ou até reprocessados, mas jogar no mar é irresponsabilidade demais da conta…

  2. De acordo com os depoimentos do professor Hayashi Kumpei, (Fukushima University), do professor Kenuchi Oshima, (Faculty of Policy Sciences Ryukoku) e de Angelika Claussen, (Vice-Presidente do IPPNW Europe – International Physicians for the Prevention of Nuclear War), há várias alternativas ao lançamento do resíduo nuclear no oceano. Essas alternativas, tais como armazenamento em terra, solidificação, aterro e descarga de vapor, são apontadas por todos esses especialistas como mais adequadas para o ambiente e com menor risco para a saúde humana e marinha. É inacreditável que nada disso tenha sido levado em conta de modo transparente. Conforme Li Chijing (Secretary-General China Arms Control and Disarmament Association) há princípios que precisam ser respeitados e melhor discutidos nesse tema envolvendo muitas fronteiras.

  3. Incrível que lidar com as catástrofes de duas bombas nucleares em 1945, além do acidente em Fukushima, não parece ser suficiente para o governo japonês entender que estará causando consequências para uma série de outras populações pelo mundo. Algo interessante, e que essa matéria da Intertelas fez diferente, foi falar das consequências que poderão haver em Ilhas da Oceania. Se não tem nada de errado com as águas e elas foram de fato devidamente tratadas, por que não deixar transparecer? Vergonha de se provarem errados com essas ações perante os Estados Unidos? Porque Comunidade Internacional tem que ser global e não somente um país.

  4. É importante notar que a gestão de acidentes nucleares é uma questão complexa e desafiadora, com preocupações legítimas sobre a saúde humana e o meio ambiente. O governo japonês tem argumentado que está seguindo as melhores práticas internacionais e diretrizes de segurança ao lidar com a situação de Fukushima. No entanto, as preocupações e controvérsias continuam a existir, e o Japão não está jogando limpo.

  5. Um tema fundamental mostrando o desprezo do governo japonês pela preservação do meio ambiente, com perigo para todas as formas de vida .Infelizmente o tema teve pouco espaço na mídia, porque pode trazer a reflexão sobre a necessidade de construirmos uma sociedade com outra lógica

  6. A “solução” japonesa, apoiada pela AIEA e outros atores mundiais, é um incrível caso irresponsabilidade ambiental, política e social. Infelizmente, por causa das turbulências políticas do período presente, o tema, que já não recebia a devida importância, praticamente desapareceu. É fundamental não deixar este tema fora de cena e expor este verdadeiro crime.

  7. É absurdo pensar que um país que foi bombardeado duas vezes por bombas nucleares, tenha uma postura como essa. O caso do navio Lucky Dragon, onde pessoas foram contaminadas pelo consumo de atum pescado nas proximidades das Ilhas Marshall, gerou uma total movimentação dentro do arquipélago. Isso porque era naquele local que os estadunidenses faziam seus testes de bombas de hidrogênio. Na época, os civis japoneses caíram matando em cima da questão da nuclearidade, como muitos deles fazem hoje em relação a água contaminada por Fukushima. Mas e então? E o governo que é extremamente capitalista e de direita? O lucro é tudo! A nuclearidade é a saída para esse bando de lunáticos, que, como a matéria deixou bem claro, são apenas fiscalizados por si mesmos.

  8. É lamentável essa postura irresponsável do governo japonês. O desastre de Fukushima já teve pouca transparência em sua apuração e até hoje não sabemos seu alcance. Agora se pretende despejar água radioativa nos mares, trazendo perigo à sua população e a de outros países.

  9. A questão do descarte de resíduos radioativos do acidente de Fukushima não só desagrada a população consciente da questão ambiental como todos os técnicos e ambientalistas no mundo.
    Aumento de temperatura da água, mortandade de corais e espécies de peixes e invertebrados na área atingida pelo descarte são algumas das consequências quase imediatas desse descarte.

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por Anders Noren

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