A hipotética reconciliação coreano-japonesa no épico de guerra “My Way”

“My Way”
(2011), de Je Kyu Kang. Crédito: divulgação.

Em junho de 1944, durante a chegada das tropas dos Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, às praias da Normandia, território francês, até então controladas por forças nazistas, um soldado japonês, depois identificado como coreano, Yang Kyoung Jong, combatente do exército alemão, foi feito prisioneiro. Trata-se de uma história real que o filme “My Way”, dirigido por Kang Je-gyu, lançado em dezembro de 2011, busca contar e, que, na realidade é uma forma diferenciada que o cineasta encontra de pormenorizar os desafios e as tensões entre Japão e Coreia.

O mais impressionante ainda é a trajetória de Yang, que antes de chegar à França, foi capturado pelos nazistas no front da Europa do Leste, quando a Alemanha invadiu e declarou guerra à União Soviética, em 1941. Nesta ocasião, ele lutava ao lado de soldados soviéticos e outros prisioneiros como ele que foram deslocados dos campos prisionais de trabalhos forçados (Gulags) na Sibéria (parte do território russo que se localiza na Ásia) para os primeiros combates diretos entre soviéticos e alemães, no período em que Moscou ainda se organizava para entrar na guerra.

Stalin, neste período, retira as principais linhas de produção de armamento bélico da frente de combate europeia e as transfere para a Sibéria. Da mesma forma, desloca seus contingentes de soldados alocados no leste (parte asiática) do país para o front europeu, após informações obtidas através de sua rede de espionagem bem articulada, que lhe assegurou a não invasão japonesa à Rússia. Antes mesmo das investidas de Hitler começarem, os soviéticos preparavam-se para uma guerra que poderia ser combatida em duas frentes. Porém, até 1942, ano que inverteriam historicamente o curso da Segunda guerra à favor dos aliados, os soviéticos perderiam diversos territórios e teriam milhares de baixas para os nazistas (entre 20 a 35 milhões de cidadãos das repúblicas soviéticas foram mortos pelos alemães), mas pouco se fala das vidas que foram perdidas nas batalhas travadas na Ásia.

Os governos nacionalista e comunista de China e Mongólia já se encontravam em forte combate de resistência à invasão e o colonialismo japonês e, em acordos estabelecidos com os grupos revolucionários destes países, os soviéticos participaram desta primeira tentativa de resistência, nos primeiros anos da guerra, que em alguns casos foram bem-sucedidos. Foi neste contexto, que podemos começar a compreender a história de Yang. Com a ocupação e controle da Coreia pelo Japão, ele foi forçado a integrar as tropas japonesas na China e Mongólia.

Foi nesta ocasião que os soviéticos o capturaram e fizeram prisioneiro. No entanto, mais detalhes da história deste soldado não são conhecidos. Apenas que ficou preso na Grã-Bretanha e depois foi transferido para os Estados Unidos, sendo liberto em 1947 e morrendo em Illinois, em 1992. Por este e outros motivos, no filme de Kang, temos as histórias reais esquecidas de Yang e do maratonista Sohn Kee-chung, ganhador de uma medalha de ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, misturadas na figura fictícia do jovem personagem Kim Jun-shik (Jang-Dong gun).

“My Way”
(2011), de Je Kyu Kang. Crédito: divulgação.

No ano de 1928, em Gyeong-seong (atual Seul), Coreia, ele, seu pai (Cheon Ho-Jin) e a irmã Kim Eun-soo (Lee Yeon-hee) trabalham na fazenda da família Hasegawa, do médico Shiro Sano (Kumi Nakamura). Tanto Kim Jun-shik, quanto o filho de Shiro, Tatsuo Hasegawa (Joe Odagiri) compartilham o interesse por corridas desde pré-adolescentes e tornam-se competidores ferozes. Um dia, o avô de Tatsuo (Isao Natsuyagi) é morto em um ataque a bomba por um combatente pela independência coreana, gerando um sentimento de extrema revolta em Tatsuo, que aprendera a ver os nativos como seres inferiores, não dignos de sua amizade e convivência.

O cerco aos coreanos é também bastante retratado em eventos esportivos, como maratonas, em que eles podem até participar, mas não têm o direito a prêmios, mesmo vencendo as competições. Ao longo dos anos, Kim Jun-shik e Tatsu alternam as vitórias em corridas. Porém, Kim decide, um dia, enfrentar as proibições e participa de uma maratona oficial, apoiado por Sohn Kee-chung (Yoon Hee-won). Mesmo vencendo Tatsu e chegando em primeiro lugar, não recebe o prêmio que lhe é devido. Assim, acaba entrando em uma briga que incita uma revolta de todos os coreanos presentes. O resultado é a prisão de todos, que como castigo devem integrar o exército japonês.

 

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Algum tempo passa, e ambos, já crescidos, encontram-se novamente em Nomonham, na fronteira entre a Mongólia e Manchuria, controlada pelos japoneses, durante os confrontos historicamente conhecidos como as Batalhas de Khalkhyn Gol. Kim é um soldado e Tatsu um coronel que incorpora todas as características radicais dos militares japoneses da época. Para ele, a vida do contingente deve ser dedicada ao imperador Hirohito, e todas medidas, inclusive suicidas, devem ser aplicadas para liquidar o inimigo. Obviamente, que os primeiros a sucumbir nestas estratégias “kamikazes” japonesas eram seus subordinados coreanos. Mais uma vez, Kim enfrenta a ira de Tatsu, recusando-se a morrer e o enfrentando no seu fundamentalismo.

Ainda, nesta parte do filme, temos a presença da célebre e talentosa atriz chinesa Fan Bingbing, incorporando o papel da atiradora de elite Shirai, do exército chinês, que é feita prisioneira pelos japoneses. Atiradoras de elite realmente existiram tanto no exército chinês, quanto no soviético, já que ambos permitiram às mulheres ocuparem importantes cargos em suas forças armadas. Na chegada dos tanques soviéticos, é ela que salva a vida de Kim e morre em seu lugar. A personagem de Bingbing é uma clara alusão a aproximação de China e Coreia e sua batalha conjunta contra o “mal” japonês, refletindo também um pouco da situação atual.

“My Way”
(2011), de Je Kyu Kang. Crédito: divulgação.

Kim e Tatsu seguirão juntos até a Normandia. Nesta verdadeira odisseia, a relação de inimizade que existia entre eles até então, aos poucos, se transforma em uma parceria e uma cumplicidade de irmãos que juntos tentam sobreviver aqueles horrores que lhes são impostos. Será nos Gulags gelados da Sibéria, sob o controle dos russos, em que japoneses e coreanos são obrigados a coexistir, ou promover o aniquilamento de ambos, que os dois começam a estabelecer este forte laço de amizade. Em uma cena bastante metafórica, ao saber dos tumultos constantes provocados entre japoneses e coreanos nos dormitórios, o general soviético oferece a eles a chance de lutarem até a morte de um deles.

Contudo, o soldado Kim não consegue matar o seu inimigo. Após serem enviados à Europa para combater os nazistas, é Tatsu que tem a possibilidade de analisar a sua conduta, ao ver-se refletido no general soviético, que durante a batalha contra os nazistas, impede o retorno dos soldados, mesmo que estes estejam sendo aniquilados pelos projéteis de fogo alemães. A única saída de ambos é tentar encontrar abrigo com seus parceiros do ocidente.

“My Way”
(2011), de Je Kyu Kang. Crédito: divulgação.

“My way”, independentemente da interpretação política que um filme desta envergadura possa incitar, é uma obra, antes de mais nada, que busca alertar tanto coreanos, quanto japoneses que a única saída para que todos possam sobreviver e coexistir é através da ousada atitude em pedir perdão e ser perdoado. Afinal, um inimigo em uma situação extrema pode, sim, ser o seu melhor amigo, especialmente, quando ambos enfrentam uma força maior, ou uma situação que faz com que as diferenças, ou os terríveis feitos do passado sejam superados, em nome da preservação da vida. Trazendo para o contexto atual, para gerações asiáticas do futuro poderem finalmente experimentarem um continente longe da ameaça de novas guerras, é preciso que alguém dê o primeiro passo na direção de superar o passado de alguma forma.

Trata-se de uma linda mensagem, mesmo que, na realidade, seja um tanto utópica e impraticável. A exemplo está o fato ocorrido em 2017, quando os japoneses chegaram a convocar seu embaixador na Coreia do Sul para consultas e protestar contra a instalação diante de seu consulado em Busan, da estátua construída em homenagem às vítimas da escravidão sexual, durante a expansão japonesa na Segunda Guerra Mundial. Ainda que Japão e Coreia tenham estabelecido um acordo em 2015, a questão ainda gera muito atrito nas relações de ambos os países.

“My Way”
(2011), de Je Kyu Kang. Crédito: divulgação.

Apesar de ser um dos filmes coreanos mais caros já feitos com um orçamento de 24 milhões de dólares, ele fracassou nas bilheterias, tendo encontrado uma forte concorrência do “Missão: Impossível – Protocolo Fantasma”, de Brad Bird, lançado no mesmo ano. Contudo, as bilheterias muitas vezes não refletem a qualidade técnica e narrativa de um filme. Esta produção conta com grandes atores de Coreia, Japão e China, com destaque para Joe Odagiri, que expressa de forma bastante sutil a mudança de percepção que Tatsu vai assumindo com relação a suas atitudes passadas e com seus subordinados, em especial Kim. Este, em todos os momentos, não deixa de treinar, correndo sempre que podia. Tal atitude deste personagem é uma alusão à força interna de um indivíduo que, mesmo sem poder algum e tendo as mais diversas injustiças que a vida em sociedade impõe-lhe, é capaz de manter a sua humanidade, uma condição que Tatsu recupera aos poucos, ao observar o antigo rival.

O filme conta ainda com a técnica de efeitos especiais bem aplicados que transportam a plateia para um cenário de batalhas épicas e uma fotografia que reflete bem a situação de caos e o inferno que ambos tem de passar nas diversas situações de provação, mas também os curtos momentos que desfrutam da tranquilidade passageira. Tudo se reflete em cores quentes, close-ups e planos abertos da paisagem ao redor que provocam uma sensação de paz proporcionada pela natureza, mas que será logo rompida pela brutalidade humana, capaz apenas de sobreviver a si própria, se for capaz de viver conjuntamente e em irmandade.

Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: http://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/hipotetica-reconciliacao-coreana-japonesa-no-epico-de-guerra-way/

Título: My Way
Título em coreano: 마이웨이 (Mai Wei)
País: Coreia do Sul
Direção: Kang Je-Gyu
Roteiristas: Kang Je-Gyu, Na Hyun, Kim Byung-In, Song Min-Gyu
Elenco: Jang Dong-Gun, Joe Odagiri, Fan Bingbing, Shin Sang-Yub, Sung Yoo-Bin, Kim In-Kwon, Lee Yeon-Hee, Kim Hee-Won, Nicole Jung,Yang Jin-Suk
Duração: 145 min
Lançamento: 21 de dezembro de 2011
Idioma: coreano, japonês, mandarim, russo, alemão e inglês
Legendas: Inglês em sites especializados

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por Anders Noren

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