A crueldade divina em “Mãe”

Os atores Javier Bardem e Jennifer Lawrence.

A fé e o divino voltaram a ser o centro das atenções, em diversas partes do mundo. Não importa qual nome receba, “Deus” voltou com grande força e domina inclusive grande parte das discussões relacionadas ao campo da Política Internacional. Sob esta suposta ideia do que venha a ser esta “Força Maior” coloca-se inclusive em discussão questões essenciais que compõem as bases da sociedade contemporânea como o Estado laico e as liberdades individuais. Contudo, aqui, busca-se realizar uma livre e breve reflexão, um pouco mais filosófica e sociológica, ao invés de geopolítica, o que também se torna apropriado, já que o assunto divindade, Deus e etc, é um assunto mundial.

Especificamente, o filme “Mãe” de Daren Aronofsky (2017) é uma crítica aos valores cristãos e à crueldade de um Deus que se nutre do amor de seus súditos, sendo incapaz de amá-los verdadeiramente em troca. Nem o sofrimento, nem o caos que a obsessão de seus fiéis provoca no mundo ao redor são suficientes para Ele aplacar a sua ânsia por mais adoração. Certamente, nada melhor que a figura repugnante do célebre, nestes anos em que se inspira e expira mídia, para representar a mais poderosa de todas as celebridades e aberrações já produzidas: o Deus que não ama.

Em “Mãe”, Deus é egoísta, sequioso de amor (atenção) e, consequentemente, poder.

A criação deste diretor apresenta um amplo espectro simbólico, deixando margens para diversas interpretações. A trama percorre o suspense psicológico, com toques de terror, resultando em um drama apocalíptico no final. Não é possível permanecer passivo a ela e, talvez, os mais sensíveis venham a questionar como eliminar esta figura divina imortal e sádica. Talvez a resposta esteja em direcionarmos nossas mentes e sentimentos para uma reflexão interior, promovendo questionamentos como o porquê sermos devotos a uma criatura tão horrenda? Seriamos nós seres sedentos por amor, mas incapazes de amar verdadeiramente em troca? Teria o nosso individualismo chegado a tal ponto que acabou por nos destruir como um todo? A impressão que Aronofsky deixa é esta: quando se trata de amor deve-se dar e querer algo em troca SIM, caso contrário não passa de exploração e escravidão!

Com a interpretação impecável de atores renomados somos levados à casa de um famoso poeta (Javier Bardem), personagem que incorpora os traços divinos comentados acima, e sua companheira a Mãe (Jennifer Lawrence), em uma clara indicação a fonte que gera, nutre e provem a vida: o amor. O poeta parece estar enfrentando uma fase de bloqueio criativo, e a Mãe faz de tudo para auxiliá-lo a ultrapassar este período de conturbação interna, reconstruindo a sua casa que fora destruída por um incêndio anteriormente. Assim, usa da sua sensibilidade para sentir a energia de cada cômodo e dar o reparo que cada um necessita. Um trabalho de devoção total. Desta forma, também é possível descrever o relacionamento deles, já que ela não o questiona, apenas deseja que tudo esteja em harmonia para que ele trabalhe em paz.

Aqui se pode recorrer a outros tipos de interpretação como o ciclo da vida, constituído de altos e baixos, e de momentos de construção e desconstrução. Contudo, o tema principal do enredo ainda sugere a tese do Deus cruel. À exemplo está a visita inesperada de um médico (Ed Harris), que está morrendo e revela-se um fã do poeta. Sem ao menos conhece-lo, ou perguntar a opinião de sua companheira, ele o hospeda em sua casa. A paixão do médico pelo poeta faz este inclusive aceitar com que ele traga seus problemas pessoais, sua esposa (Michelle Pfeifer) e seus filhos para aquele espaço íntimo e seguro que a Mãe criou para eles.

A esposa do médico é um personagem importante, que provoca um ponto de virada na trama. Ela, diferentemente, da Mãe, tem o controle sobre os seus e um certo poder de manipulação, podendo inclusive persuadir o próprio poeta/Deus, em alguns momentos, usando do egocentrismo deste, a fazer o que ela deseja. Esta figura feminina vai provocar e questionar a Mãe sobre o real amor que o poeta sente por ela. Afinal, a verdadeira razão de uma mulher bonita existir é despertar o desejo sexual do parceiro, no intuito de gerar filhos. A Mãe é instigada pelas indiretas desta personagem e acaba incitando o poeta a finalmente ter relações com ela e engravidá-la.

O nascimento da criança impulsiona o poder criador do autor, resultando em uma outra obra prima; mas, também será a prova da falta de amor deste, levando ao fim tráfico da Mãe. Novos fãs chegam à casa do casal para trocar algumas palavras com o Criador, estar próximo dele e tocá-lo. A casa que também tinha sofrido danos físicos com os convidados anteriores e começava a cicatrizar as feridas, volta a ser atacada, depredada e por fim destruída.

Durante as cenas, que são uma referência simbólica ao apocalipse, a Mãe começa a sentir as dores do parto, e o poeta, até então concentrado em nutrir a paixão que seus súditos dedicavam a ele, volta-se finalmente para ajudar a Mãe. No entanto, ele entrega o recém-nascido aos fãs e deixa que eles o sacrifiquem. Esta é uma possível analogia ao nascimento de Jesus e ao pai Deus que gera um filho para sofrer nas mãos dos humanos, apenas para que estes possam futuramente saberem da sua existência e adorá-lo. A Mãe finalmente compreende que o Deus não a ama e destrói tudo, menos o amor verdadeiro que ela sente por ele.

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Até isso o poeta vai utilizar para criar uma nova Mãe, fazendo prevalecer e continuar o seu prazer em ser adorado. Com efeitos especiais que auxiliam a fixar a atenção nos diversos atos do enredo, o filme engloba ainda vários temas e questões que podem ser analisados pela sua perspectiva, tornando-o não apenas necessário, mas também, possivelmente, uma verdadeira obra cinematográfica que retrata uma época e constará na lista de clássicos imprescindíveis do futuro.

Fonte: Texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2017/09/24/a-crueldade-divina-em-mae/

Título: Mãe
País: EUA
Direção: Darren Aronofsky
Roteiristas: Darren Aronofsky
Elenco:  Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer.
Duração: 2h01min
Lançamento: 15 de setembro de 2017
Idioma: Inglês
Legendas: português

 

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por Anders Noren

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