
A atual Síria está estrategicamente localizada no entroncamento entre a Ásia, África e Europa. Com cerca de 185 mil km2 e uma população de aproximadamente 22 milhões de habitantes, a República Árabe da Síria é apenas uma lasca do território da Síria histórica, que corresponde, nos dias de hoje, o Líbano, a Jordânia, a Palestina/Israel e porções do Iraque e da Turquia (o sanjack de Alexandreta, convertida pelos turcos em província de Hatay, cedido pelos franceses aos turcos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45)).
A Síria Histórica denominada pelos árabes de Bilad al-Sham (“Terra do Sol”) foi habitada na Antiguidade pelos amoritas, fenícios-cananeus, arameus, hititas, entre outros, e foi dominada pelos assírios, babilônicos, egípcios, hititas, grego-macedônios e romanos. Em seu território, a religião Cristã foi fundada e disseminada para o mundo, a partir de Antioquia (hoje ocupada pela Turquia). Também foi sede do primeiro Império Árabe-Muçulmano, o Omíada (660-750), que se estendia do Oceano Atlântico à Ásia Central (da Península Ibérica à Índia). Com o colapso dos omíadas, foi província de outros impérios: Abássida (750-909), Califado Fatímida (909-1171), Império Ayubidas (1171-1260) e o Império Mameluco (1256-1516), até cair sob o domínio do Império Otomano, entre 1516 e 1918.

Durante a emergência do Imperialismo europeu capitalista liberal, no século XIX, os territórios árabes do Império Otomano na Ásia e na África serviram como passagem obrigatória entre a Europa, a Índia e a China. Assim, a Síria histórica, sob o domínio otomano, converteu-se numa zona tampão nas disputas imperialistas entre britânicos, russos e franceses. Estes entraram em acordo (o Sykes-Picot-Sazanov), no final da I Guerra Mundial (1914-18), para dividir a região em “zonas de influência” a cada potência, sem levar em consideração a convivência multimilenar entrelaçada entre si de inúmeras etnias e comunidades religiosas. Dessa forma, os britânicos passaram a controlar a Palestina, a Transjordânia e a Mesopotâmia, enquanto os franceses tomaram o controle sobre a Síria, agora, amputada de seu litoral meridional palestino. Os russos, por sua vez, não tiveram tempo para tomar qualquer território, tragados que foram pela Revolução Socialista de 1917.

O mandato francês sobre a Síria não respeitou a proclamação do Reino Árabe da Síria pelo Congresso Nacional Árabe- Sírio de 1920, sob a monarquia constitucional e parlamentar do rei Faysal al-Hachemi. Neste Congresso, também foi estabelecido a fundação de uma universidade e o estabelecimento de eleições livres e regulares. Isto é, o Reino Árabe-Sírio nasceu sob um regime democrático.

Para combater a democracia síria e o nacionalismo árabe, a França dividiu o território sírio entre as comunidades confessionais para implodir qualquer identidade nacional e até mesmo de classe, acirrando o sectarismo religioso. Assim, surgiu o Grande Líbano, extirpado para ser o “paraíso dos maronitas”, em 1920, o Estado Alauíta, o Estado do Monte Druzo, o Estado de Alepo (“sunita”) e o Estado de Damasco (“sunita”). Esta partilha resultou em sangrentas revoltas ferozmente reprimidas pelos franceses. Em 1924, a Síria voltaria a ser unificada, mas sem o Líbano, que se tornaria independente, duas décadas depois, fruto de um acordo entre a burguesia sunita local e as classes médias cristãs maronitas.

A independência da Síria de facto só ocorreria em 1946, após um bombardeio aéreo francês sobre Damasco, quando se retiraram sob pressão britânica, assassinando centenas de civis. A Síria nasceria como uma República constitucional, liberal-democrática (ainda que liberal) e parlamentar, a primeira do mundo árabe e do Oriente Médio, nascida da vontade dos árabes sírios (e não dos franceses) de se libertarem do jugo europeu imperialista.
Assim como o Brasil, a França, o Reino Unido, a Itália, os EUA, a Espanha e a Rússia, a Síria também é uma sociedade multiétnica (com a presença de curdos, armênios, arameus, turcos e árabes, entre outros) e multiconfessional (ateus, judeus, católicos romanos, protestantes, assírios, caldeus, siríacos, jacobitas, greco-melquitas, greco-ortodoxos, armênios gregorianos, armênios ortodoxos, maronitas, xiitas, sunitas, druzos, ismaelitas, alauítas, entre outros). Esta pluralidade étnico-confessional está igualmente presente no Líbano, no Iraque, na Jordânia, no Egito e na Palestina (sob a ocupação de Israel). Esta pluralidade polariza com o exclusivismo comunitário do “Estado judeu”. Não podemos nos surpreender, portanto, com a ferocidade com que os sírios combateram a fundação de Israel, não sendo derrotados no campo de batalha, entre 1948 e 1949.
Durante a guerra contra o Estado sionista, os sírios enfureceram-se com o apoio ianque aos sionistas e vetaram a construção de um oleoduto ARAMCO (Arab-American Oil Company) em território sírio. Em resposta, em março de 1949, os EUA depuseram o presidente constitucional da Síria, no primeiro golpe de Estado promovido pela CIA, colocando no poder o coronel de origem curda Hosni Zaïm, sob a promessa de fazer a paz com Israel. A ditadura do coronel Zaïm rapidamente se tornou impopular e ele foi deposto por outro golpe militar, para, dessa vez, restabelecer a soberania da Síria, em junho de 1949.
A partir de então o país passou por um período de instabilidade política, dada as pressões geopolíticas, especialmente as ameaças de guerra de Israel (jamais contestadas pelos EUA), que só foi momentaneamente pacificado durante a união com o Egito – a República Árabe Unida (RAU), entre 1958 e 1961.
Universal Newsreel da Universal Studios (EUA) sobre a fundação da república:
A instabilidade retornaria depois da secessão síria da RAU, quando o partido nacionalista árabe, nasserista e revolucionário Ba’ath ascendeu ao poder em março de 1963, com o apoio de Nasser e da seção iraquiana do partido. As derrotas diante de Israel, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, com a perda das Colinas de Golã, e no Setembro Negro (1970), no entanto, desmoralizaram a ala esquerdista do partido, fazendo com que o moderado brigadeiro Hafez al-Assad, então ministro da Defesa, assumisse o poder em novembro de 1970.

Imediatamente, ele reorganizou as forças armadas síria para o contra-ataque a Israel, na Guerra do Yom Kippur, em outubro de 1973, reconquistando parte dos territórios do Golã, que provocaria a renúncia da primeira-ministra de Israel Golda Meir.

A partir de então Hafez al-Assad, ainda que governasse de forma autoritária, implementou uma série de reformas sociais e nos setores produtivos e financeiros na Síria, modernizando o país: reforma agrária, edificação de sistemas de transporte, saúde e educação públicos, sistema de água e esgoto público, desenvolvimento de uma indústria farmacêutica autóctone e pública, emancipação das mulheres, moradias, entre outros, modificando a estrutura social do país. Reformas que eliminaram o analfabetismo, a fome e a miséria do país arrefecendo as desigualdades sociais. Essas transformações foram beneficiadas pela aliança com a União Soviética. Quando a URSS desapareceu, em 1992, Assad já havia aproximado-se dos EUA, que não garantiram a segurança da Síria ao permitirem que Turquia e Israel ameaçassem atacar os sírios, em 1998. Assad foi obrigado a reaproximar-se de seu antigo rival correligionário iraquiano Saddam Hussein. Isso foi um sinal de alerta para Washington DC, que planejava destruir o Iraque de uma vez por todas.
O velho líder sírio morreu, no entanto, em 2000, e o seu filho, Bashar, foi rapidamente eleito presidente da República. Apesar da abertura política e liberalização financeira promovida no país pelo novo líder sírio, os EUA voltaram-se contra a Síria, após a segunda invasão ianque do Iraque (2003). O plano era destruir o país, após a queda dos iraquianos, para abrir o caminho e atacar o Irã, favorecendo, desse modo, a hegemonia israelense (e, por tabela, ianque) sobre todo o Oriente Médio. Isso só foi possível quando, durante as manifestações populares contra “regimes ditatoriais”, que se espalharam por todo o mundo árabe, eclodindo em toda a região, entre 2010 e 2011. Essas manifestações foram chamadas pela mídia ocidental de “Primavera Árabe”.

Esquadrões da morte, grupos de extermínio, patrocinados pelos EUA e seus clientes das petromonarquias árabes do Golfo Árabe-Pérsico, invadiram a Síria, oriundos da Jordânia, Iraque e Turquia, infiltrando-se nessas manifestações. Esses grupos terroristas deram início a centenas de ataques a prédios públicos como escolas, delegacias de polícia, universidades, hospitais, fábricas de remédios, instalações esportivas, igrejas cristãs, entre outros. Inúmeras cidades foram totalmente arrasadas. Acredita-se que mais de 100 mil mercenários invadiram o território sírio. Rapidamente, o governo perdeu o controle de vastas regiões do país. Ainda assim, a reação das forças governamentais foi vitoriosa, recebendo apoio militar do Irã e da milícia da resistência libanesa Hizbollah. Os russos e chineses evitaram envolver-se diretamente. A cada vitória síria, no entanto, era seguida de uma nova onda de invasão terrorista.
Em setembro de 2013, usando o pretexto de um suposto ataque químico das tropas sírias contra civis desarmados num subúrbio de Damasco, os EUA ameaçaram bombardear o país, no que poderia abrir o caminho para um contra-ataque russo, no que poderia transmutar-se facilmente em uma guerra mundial nuclear e aberta. Os russos resolveram a crise com uma solução diplomática, que resultou na destruição do arsenal químico sírio. Após essa vitória, no verão de 2014, um grupo de terroristas autodenominado Estado Islâmico do Levante e do Iraque (DAISH, sigla em árabe), invadiu a Síria a partir do Iraque e da Jordânia, recebendo apoio tático da Turquia, ocupando 40% do território sírio e quase a metade do território iraquiano. Esse grupo promoveu uma violência sectária sem precedentes, angariando a simpatia de fanáticos, criminosos e oportunistas sádicos ao redor do planeta que afluíram para as hostes desse esquadrão da morte. Nessa época, o governo sírio controlava apenas 25% do território do país e 66% de sua população. Cerca de metade dos habitantes do país encontrava-se desabrigada, sendo que 4 milhôes refugiaram-se em outros países, principalmente Turquia, Líbano e Jordânia. Havia uma grande possibilidade do governo sírio entrar em colapso.
O abate de um caça de guerra russo por um outro turco no espaço aéreo sírio em finais de 2015 traria uma reviravolta geopolítica na região. A represália russa contra a Turquia não ultrapassou as sanções comerciais. Logo, os turcos perceberiam que as milícias curdas sírias que combatiam o DAISH no norte da Síria eram patrocinadas pelos EUA e elas não escondiam o projeto de criar um Estado curdo no leste do território sírio, o que representava uma ameaça à integridade territorial da Turquia, uma vez que os curdos de nacionalidade kurmanji (também majoritários entre os curdos sírios) representavam cerca de 15% de toda a população turca. Não demorou para o governo turco pedir desculpas ao governo russo.
A partir de então, as sanções russas foram suspensas e Ancara e Moscou aproximaram-se, a ponto do presidente Vladimir Putin entrar em contato direto como o seu homólogo turco Ricep Erdogan, quando esse sofreu uma tentativa de golpe militar em julho de 2016. O objetivo estratégico da Rússia é retirar a Turquia da OTAN, a aliança militar atlântica vassala dos EUA, compensando o golpe que sofreu com a instalação de um regime neonazista-liberal na Ucrânia pelos ianques.
Os russos tiraram outras vantagens com esse estreitamento de relações com os turcos. Isso foi fundamental para auxiliar os sírios na reconquista de Alepo, ocorrida na virada de 2016 para 2017. A aliança dos russos com turcos e sírios, dois inimigos no campo de batalha, fez com que Moscou se tornasse, pouco a pouco, em árbitro indispensável no longo e sangrento conflito sírio, marginalizando regionalmente o papel dos EUA e de seus clientes locais.

A reconquista síria de Alepo, em 2017, representou uma grande vitória do “eixo da resistência”, formado pela Rússia, Irã, Síria e Hizbollah, que se opõe à hegemonia imperialista ianque na região. A partir de então, o governo ba’athista reconquistou 60% do território sírio, inclusive partes das Colinas de Golã, de onde Israel havia expulso as tropas de paz da ONU por intermédio de grupos terroristas anti-Ba’ath. Trata-se de uma grande derrota para os israelenses, que jamais esconderam os planos de dividir todo o Oriente Médio em bases étnicas e religiosas, criando “fronteiras sangrentas” – à sua imagem e semelhança.
Restam, hoje, territórios no leste da Síria (26% do total), que se encontram sob o domínio de milícias sectárias curdas kurmanjis pró-EUA, e no norte (12%), sob o domínio de outros grupos terroristas patrocinados pelo Ocidente e clientes regionais. É a hora decisiva para a Síria reconquistar totalmente seu território e assegurar uma grande vitória sobre o imperialismo na Ásia, pois caso o território sírio fosse esfacelado, abriria o caminho para a destruição do Irã e do todo o sudoeste asiático, incluindo a Turquia, criando uma onda de choque que atingiria a Rússia, China e a Índia, tendo suas sociedades multiétnicas e multiconfessionais implodidas, ante o poder global dos EUA.
Ramez Philippe Maalouf
Especialista em Relações Internacionais pela UERJ, mestre e doutor em Geografia Humana pela USP.
A seguir dicas audiovisuais sobre os conflitos na Síria e no Oriente Médio.
Documentários Russia Today – Guerra na Síria.
Guerras no Oriente Médio:
Paradise Now (2006), Hany Abu-Assad
Comando Imbatível (1990), Lewis Teague.
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