Através dos filmes é possível tentar retratar acontecimentos históricos por outra perspectiva que não a análise científica, ou acadêmica. Por diversas vezes, nas várias reflexões estabelecidas por estudiosos, até por uma demanda que se impõe ao cientista: o seu distanciamento do objeto de pesquisa, a questão humana é deixada para segundo plano. Contudo, apesar desta abordagem dos fatos ser extremamente importante, ao público geral a forma como a história acaba influenciando as pessoas, o cotidiano destas, tendo mais significado e pode construir pontes para soluções a problemas históricos como a divisão entre as duas Coreias.
Em “Zona de Risco” (2000), dirigido por Park Chan-wook, tem-se a tentativa de aproximação narrada através de uma perspectiva bastante peculiar, pouca trabalhada no cinema: a interação entre norte e sul-coreanos que guardam seus respectivos “Checkpoints”, ou pontos de vigília. A obra que foi exibida durante a 1ª Mostra Coreana do Rio de Janeiro, realizada pela AsiaColors, neste mês de agosto de 2018, é uma chance para o público geral refletir sobre a questão, sem os preconceitos propagados pelas mais diversas fontes, em especial a grande mídia.
A trama inicia com uma grande contenda entre as duas repúblicas, pois dois integrantes do exército norte-coreanos são mortos na zona desmilitarizada da Coreia (ZDC), no checkpoint norte-coreano, quando o sargento sul-coreano Lee Soo-hyeok (Lee Byung-hun), tenta fugir para o sul. Ele é resgatado por seus compatriotas sulistas, que ainda disparam tiros contra o lado norte. Dois dias depois, a frágil relação entre as duas Coreias necessita do auxílio de um terceiro ator imparcial que, no caso, trata-se da Comissão Supervisora das Nações Neutras, cuja representante é a major do exército suíço Sophie E. Jean (Lee Young-ae), filha de pai coreano e mãe suíça.
Sophie vê-se em uma situação delicada, pois as duas Coreias têm relatos contraditórios do ocorrido. Lee Soo-hyeok confirma que houve um tiroteio, enquanto ele e o colega do exército coreano Nam Sung-shik (Kim Tae-woo) tentavam fugir. Segundo o sargento, eles teriam sido nocauteados e sequestrados. Ao acordarem ambos se viram amarrados no ponto de vigília norte-coreano. Ao conseguirem secretamente se libertarem das amarras, atiraram em três norte-coreanos, deixando dois mortos. No entanto, o sobrevivente do norte Sargento Oh Kyeong-pil (Song Kang-ho) afirma que Soo-hyeok foi quem invadiu a casa, ou estabelecimentos do checkpoint norte-coreano e atirou em todos antes de recuar. Neste momento, Kyeong-pil, ferido, teria disparado a sua arma.

Com o uso de flashbacks, em que a história vai sendo contada na direção contrária, do fim ao início, permitindo ao espectador entender aos poucos o que realmente ocorreu. Park Chan-wook vai aos poucos envolvendo o público naquele contexto, fazendo-o compartilhar do sentimento daqueles indivíduos comuns. Trata-se de uma técnica que foi muito bem utilizada pelo diretor, contudo, provavelmente, não teria grande efeito se o cineasta acabasse por insistir em ideias bastante comuns de como a plateia, em especial a ocidental, enxerga os norte-coreanos e sua escolha ideológica. Ao contrário do que se está acostumado a ver nos filmes Hollywoodianos, os cidadãos do norte são bastante humanos, brincalhões, desconfiados, emocionais, idealistas, no sentido positivo, talvez muito parecidos com aquele amigo que você gosta de estar junto para confraternizar, ou até para trocar questões bastante íntimas de sua vida.

Tal encontro deu-se, na realidade, com um erro banal das tropas sul-coreanos durante uma patrulha. Eles acabam por atravessar a fronteira confundindo um checkpoint norte-coreano por um da Coreia meridional. Ao perceberem a grave situação que se encontravam, trataram logo de retornar ao sul, deixando para trás o sargento Lee que pisara em uma mina terrestre. Sem ninguém para recorrer, ele logo acaba tendo a companhia de um filhote de cachorro que fugiu de seu dono, o soldado norte-coreano Jung Woo-jin (Shin Ha-kyun) que sai de seu posto para procurá-lo. Neste momento, Lee conhece também o sargento Oh Kyeong-pil, que em companhia de Jung Woo-jin, desarma a mina, resgatando Lee.

Desta situação inusitada, a interação entre os personagens inicia, em grande parte incitada pelo próprio sargento sul-coreano, um homem solitário, sem amigos íntimos, ou qualquer laço familiar mais forte, como ele próprio descreve nas mensagens que passa a enviar de forma clandestina aos compatriotas do Norte. Esta distante relação logo promove a formação de uma improvável amizade e a ideia de convivência entre irmãos, quando Lee resolve finalmente visitar, em segredo, os integrantes do exército norte-coreano, ultrapassando a fronteira. Ao invés de ser rechaçado, ele é bem recebido e acaba por trazer consigo, mais tarde, outro sul-coreano Nam Sung-shik.

Apesar do clima de mútua confiança que parece imperar, Nam Sung-shik desconfia dos irmãos do norte, pois afinal muito se fala que estes atuam de forma calorosa e amigável, no intuito de persuadir, ou até sequestrar cidadãos do sul capitalista. É este clima de desconfiança que acaba desencadeando a tragédia futura, quando a interação proibida entre o grupo de coreanos é descoberta. Não há em momento algum o clichê de cidadãos do norte, sucumbindo ao regime, desesperados por liberdade, mortos de fome, ou desiludidos com o sistema.
Não, o sargento Oh Kyeong-pil é uma pessoa que viajou pelo mundo, teve contato com outras culturas, parece deter muito conhecimento adquirido com estudo e um certo equilíbrio mental e emocional, fazendo com que o sargento sul-coreano Lee pareça uma espécie de irmão mais novo, ou filho inexperiente, simplório e ingênuo. Mesmo a crítica política aos líderes do norte é realizada de forma bastante sutil e compensada em diversos momento ao longo do filme. Por sua vez, as autoridades sul-coreanas são representadas de forma bastante conservadora, possuindo o “chavão” anticomunista, sendo pouco inclinadas a um diálogo maior.
Certamente a carga emocional necessária destes personagens só seria possível com a atuação consistente dos atores, hoje veteranos, Lee Byung-hun e Song Kang-ho. Porém, eles contam com o apoio da representação de Shin Ha-kyun e Kim Tae-woo, que incorporam aos seus personagens secundários uma naturalidade as suas características simples, imaturas e ingênuas. Enquanto Nam Sung-shik suspeita de tudo e é cauteloso, até medroso; Jung Woo-jin tem uma personalidade bastante pura, infantil e idealista em alguns momentos. A fotografia no posto de vigília norte-coreano tem uma coloração em tons amarelos dando uma sensação de aconchego, em especial nos momentos de reunião e confraternização dos quatro soldados.
Os diversos close-ups e planos detalhes auxiliam na assinatura de um filme que busca transmitir ao espectador uma carga de familiaridade, proximidade e emoção. Já Lee Young-ae, na pele da major Sophie, cumpre bem o seu papel como uma investigadora neutra. Ainda que seja de descendência coreana, ela foi criada longe deste contexto, sendo mais uma figura externa que tenta desvendar não somente o que ocorreu naquela noite, mas ainda conhecer melhor a personalidade dos sobreviventes. Consequentemente, isso a leva compreender o contexto político e humano que se desenvolveu na região com o qua ela tem profundos laços de origem.
Por esta e outras razões, “Zona de Risco” é uma obra que merece ser vista como complemento de quem estuda, ou se interessa pelos acontecimentos da península coreana, em seu período histórico mais recente. Mas, acima de tudo, é uma oportunidade para rever conceitos que acabam perdendo-se em meio a batalha ideológica histórica que nos acompanha desde que nos vimos como sociedade moderna. Também é necessário entender que se amigos, ou inimigos, irmãos, ou não, há sempre um ser humano com qualidades e defeitos do lado oposto ao que se está defendendo; e que para evitar confrontos e viver em harmonia é importante antes de tudo acabar com as ideias pré-concebidas e tentar compreendê-los a sua forma, sem qualquer imposição de valores e código políticos que se acredita serem superiores.
Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: http://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/zona-de-risco-questao-humana-no-conflito-entre-sul-e-norte-coreanos/
Título: Joint Security Area
Título em coreano: 공동경비구역 JSA (Gongdonggyeongbiguyeok JSA)
País: Coreia do Sul
Direção: Park Chan-wook
Roteiristas: Seong-san Jeong, Hyun-seok Kim
Elenco: Yeong-ae Lee, Byung-Hun Lee, Kang-ho Song, Tae-woo Kim, Ha-kyun Shin
Duração: 1h50min
Lançamento: 9 de setembro de 2000
Idioma: coreano, inglês e alemão
Legendas: Inglês (em sites especializados) e português (Youtube)
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