
O filme começa: Os créditos são apresentados ao som de ruidosas buzinas, sirenes e outros sons típicos da urbe caótica. Um tema de Nino Rota ameaça ganhar vida… “Ensaio de Orquestra”, realizado em 1978 para a TV Italiana, foi a mensagem política do mestre, num momento de catarse na sociedade Italiana após o sequestro e conseguinte assassinato do ex-primeiro ministro Aldo Moro pelas brigadas vermelhas.
A tensão política em países como a Itália e a Alemanha elevavam a temperatura política do velho continente, profundamente afetado pelos desdobramentos da guerra fria. Temeu-se pela coesão social. Temeu-se, mais, pela própria sobrevivência da democracia. E no meio da intensa refrega política que convulsionava a bota, Federico Fellini produz uma pequena pérola política, permeada da sua mis-en-scène carcaterística, que remetia ao delírio e a construção de universos fílmicos permeados de poesia.
O recurso narrativo discorre em torno de um suposto documentário, que pretende acompanhar um ensaio de orquestra. Simples. A equipe técnica do documentário nunca é mostrada, mas sabemos da sua presença, seja pela voz nasalada do seu diretor, pela luz que assalta os músicos na penumbra, ou mesmo da quebra da quarta parede, que faz os músicos conversarem com a câmera. O passeio fílmico pelo universo da orquestra vai crescendo como um verdadeiro concerto, e os músicos vão apresentando seus instrumentos, suas veleidades, seus egos, seus preconceitos…
E dessa forma envolvente, Fellini vai costurando um pequeno tratado sobre as divisões políticas, comportamentais e geracionais tão presentes na sociedade Italiana, ainda mais num momento que a perplexidade e o temor pelo amanhã derramavam uma névoa de insegurança institucional no país. Num determinado momento, um trompetista diz que arte acabara e que ele era um simples operário. “Exatamente como a Fiat”, dispara…
Até que, por fim, vem a ruptura: os músicos se insurgem contra o maestro, que assiste impassível sua substituição por um grande metrônomo. Os músicos estão em frenesi; bebem, mastigam e dançam furiosamente. Os jovens, com seus cabelos longos e suas roupas coloridas, se entregam ao sonho, ao passo que os velhos, entre estupefatos e temerosos, assistem. O Caos. A Itália.
O prédio rui. Uma bola de aço bota abaixo a sala de concerto (o filme é todo feito nos estúdios da Cinecittá). Ruínas.
A Itália está em ruínas.
O Regente ri. Sacode a poeira.
E a música de Nino Rota toma o filme. Bela, poética, inspiradora.

O mestre Fellini dá o poder ao maestro (o estado de direito?), que repactua os laços sociais italianos. Os músicos organizam-se, empoeirados, saem os primeiros acordes. A Música explode. A civilização retorna. A Itália é salva. O filme claramente aposta na congregação dos diferentes, ainda que sob a tutela do estado ou de um poder moderador qualquer. No mínimo, alguém que dê um sentido para a orquestra (e, fundamentalmente, para o país). E ainda que possamos racionalizar a mensagem até certo ponto conservadora do maestro, não podemos negar sua força.
Por isso, o filme de Fellini é tão necessário para compreendermos, ao menos do ponto de vista psíquico, a fragmentada sociedade brasileira. Para o Brasil de 2018, a divisão que cinde a sociedade parece nos condenar para a fragmentação final, o esgarçamento social e institucional. Somos uma orquestra quebrada e dissonante.

Fellini sempre operou a franja tênue entre a ficção e realidade, a mentira e a mistificação, o sonho e a realidade. Ainda mais depois de “Amarcord” (1973), foi aprofundando sua linguagem, usando, em muitas ocasiões, atores amadores para exprimir uma doçura autêntica e crível. No seu filme mais político, ele pinta um quadro errático da sociedade Italiana, com seus histrionismos e violências.
Mas, ao final, quando todos aos farrapos, executam uma peça, ele está dizendo, do seu jeito e com seu humor habitual, que aquele caos barulhento e caótico era belo, humano, complexo e distinto. A Itália que ele via continuava cindida pelas gerações, escolhas políticas e classes sociais. Sua beleza vinha do confronto, do caos, do barulho e do destempero. A Itália sofria na realidade acrítica dos dias, mas reinava no imaginário do mestre. E no nosso também.

Assim é, ou pode ser, o Brasil. Mágico, injusto, violento, ultrapassado, moderno, sensual, conservador, hipócrita… Se Fellini escolhe uma orquestra para demostrar a desarmonia do seu povo, poderíamos emular um desfile de escola de samba, onde passistas e carros alegóricos estão desconjurados, e o samba enredo é violado por todos na avenida.

Imaginem a câmera do Maestro, desviando de sambistas, percussionistas e carros alegóricos, mostrando todo nosso colorido e contraditório modo de ser. Nossas violências, nossos assaltos de pudor, nossos moralismos cafajestes… Que filme imaginário. Me refugio nele algumas vezes…
Antes do fim da avenida da nossa existência, teremos a chance de nos encarar de frente, por entre hematomas e escarros, e entender que, ao cabo de nossas vidas fugazes e céleres, teremos vivido e nos odiado o suficiente. Para sair de cena languidamente, como um samba do Cartola… Fellini entendeu que a Itália reencontraria-se em meio aos escombros da Luta Política. O que assusta é que já reviramos todo o entulho e ainda estamos sujos.

“Ensaio de Orquestra” é um deleite fílmico. Uma pérola. E um sinal de esperança da Itália corroída dos anos 70 para o colosso das américas, erroneamente despertado da sua macunaística preguiça alguns anos atrás…
“Ensaio de Orquestra” (1978), dirigido por Federico Fellini.
Entrevista do diretor para a Rai Storia. (em italiano)
Título: Ensaio de Orquestra
País: Itália e Alemanha Ocidental
Direção: Federico Fellini
Roteirista: Federico Fellini
Elenco: Balduin Baas, Clara Colosimo, Elizabeth Labi
Duração: 1h10min
Lançamento: 22 de fevereiro de 1979 (Itália)
Idioma: italiano e alemão
Legendas: português
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