A vigança dos filhos de Gwangju

Crédito: YouTube.

Já dizia um grande intelectual brasileiro Darcy Ribeiro que existe um projeto de inviabilização do Brasil, através de uma desconstrução de várias áreas, entre elas a educação. Em um país com grandes falhas no sistema educacional resulta, em grande parte, em um povo sem memória, fadado a repetir erros. A ditadura militar no Brasil fez muitas vítimas, algumas sobreviveram para contar o que passaram; outras, as famílias ainda esperam encontrar os corpos dos parentes desaparecidos. Contudo, ainda precisam ouvir de muita gente, que a repressão não teria sido, assim, tão dura…

A história recente da Coreia do Sul também apresenta um quadro bastante autoritário e violento de governos militares extremamente cruéis. Após conseguir realizar grandes mudanças em seu sistema educacional, com políticas de investimentos que foram perpetuadas pelos diferentes governos ao longo dos anos, os coreanos fazem questão de lembrar e relembrar aqueles que sofreram com a repressão, no intuito de promover consciência às futuras jovens gerações de que tais situações históricas nunca mais se repitam.

Em 18 de maio de 1980, a cidade de Gwangju, na Coreia do Sul, passou por uma revolta popular que ficaria conhecida na história como a Revolta Democrática contra o Regime Militar. O general Chun Doo-hwan, em 1980, assume o poder através de um golpe, interrompendo o governo transitório de Choi Gyuha. Por esta razão, estudantes locais da Universidade de Chonnam protestavam contra o general. Eles foram atacados, espancados e mortos pelas tropas do exército. Estima-se que até 606 pessoas podem ter morrido. Moradores de Gwangju, então, resolveram pegar em armas iniciando uma insurreição que logo foi contida. Com o fim das ditaduras e a instauração da democracia, em 1997, foram estabelecidos um cemitério nacional e um dia de comemoração (18 de maio), juntamente com atos para “compensar e restaurar a honra” das vítimas.

Chun Doo-hwan, posteriormente, foi perdoado pelo Presidente Kim Dae-jung. Em 2011, os arquivos daquela época foram inscritos no Registro da Memória do Mundo da UNESCO. Da mesma forma a indústria cinematográfica sul-coreana faz questão de perpetuar na memória do público nacional o horror do massacre em diferentes produções que acabaram por conquistar os espectadores. “26 anos” (2012), dirigido por
Jo Geun-hyun e disponível no Netflix, aborda o tema de uma perspectiva diferente. 26 anos depois do ocorrido, em 2006, cinco parentes de pessoas que foram mortas em Gwangju, tramam um projeto ultrassecreto para vingarem-se e assassinar o ex-presidente (Jang Gwang).

A atriz Han Hye-Jin. Crédito: IMDb.

São eles: Kwon Jung-hyuk (Im Seul ong), um policial recém-recrutado que perdeu sua família no massacre; ele é responsável pelos carros que têm acesso à casa do alvo; Kwak Jin-bae (Jin Goo), um jovem gangster, cujo pai foi morto; a atiradora olímpica Shim Mi-jin (Han Hye-jin), o diretor de uma grande empresa e ex-soldado que esteve presente no massacre Kim Gap-se (Lee Geung-young) e Kim Joo-ahn (Bae Soo-bin), diretor de uma empresa de segurança privada, que também perdeu a família. O ex-presidente vive sob proteção policial intensa em um bairro rico de Seul, mas através de uma combinação de engenhosidade, habilidade e dinheiro eles serão capazes de bolar um plano para eliminá-lo.

O ator Jin Go. Crédito: IMDb.

O filme em si encontrou grande dificuldade para arrecadar o orçamento necessário. Há rumores que o governo conservador da época teria pressionado para tanto. Contudo, após algum tempo, com a contribuição de 15 mil indivíduos, do cantor Lee Seung-hwan e da Chungeorahm Films, as gravações puderam iniciar. Baseado no webtoon de Kang Full, um dos maiores artistas da Coreia neste quesito, o diretor consegue em grande parte do filme passar para a tela a ideia de brutal repressão pela administração ditatorial da época, brilhantemente ilustrada por Kang. Diferentemente do que podemos esperar de um filme que aborda a questão de vítimas de ditaduras, o enredo escolhe apresentar o drama das gerações seguintes, enfatizando de forma bastante sutil  que as marcas do sofrimento daqueles que experienciaram situações extremas perpetuam-se ao longo do tempo em seus descendentes.

O ator Im Seul-Ong. Crédito: Asianwiki

As histórias dos personagens estão interligadas de maneira que transmitem a ideia de que estariam destinados a reunirem-se no futuro e transformarem-se não apenas em um grupo que busca por justiça, mas em uma espécie de família, unida pela dor coletiva. Afinal, todos os personagens têm vidas pessoais bastante tumultuadas e problemáticas, demonstrando que a falta de justiça, ou de ao menos uma desculpa por parte dos que perpetraram o massacre, poderia dar um fim à angústia e sensação de impunidade. Nos primeiros momentos do filme, o massacre em Gwangju é feito em animação para posteriormente passarmos ao live-action, estabelecendo a conexão com o webtoon de Kang. Como é comum ao cinema sul-coreano, nesta obra, também se misturam gêneros como drama, ação e momentos cômicos de forma bastante balanceada, provavelmente contribuindo para o sucesso de bilheteria do filme que ficou entre os mais assistidos, no período de dezembro de 2012 a janeiro 2013.

Os atores Lee Kyoung-Young (E) e Bae Soo-Bin (D). Crédito: IMDb.

O filme conta com grande elenco, mas a interpretação de Jin Goo ganha destaque, vivendo na pele de uma espécie de justiceiro e gangster emocional, bastante humano, ainda que com difícil temperamento explosivo. É dele que se retira os momentos tanto de grande dramatização, quanto de atitudes cômicas e irreverentes de seu personagem. O ator ganhou o prêmio do júri no Festival Golden Cinema de 2014 e foi indicado nas categorias de melhor ator principal e coadjuvante. Jang Gwang mais uma vez também se destaca no convincente vilão insensível, ardiloso e desumano.

O ator Jang Gwang. Crédito: AsianWiki

Ainda que se trate de uma ficção, baseada em histórias reais, o plano de vingança do grupo não passa de pura ficção. Na vida real, o ditador Chun Doo-hwan não respondeu por seus crimes. No entanto, a cinematografia sul-coreana parece fazer questão de perpetuá-lo na história como um genocida, ou deixar registrado o lado maléfico do general. O próprio diretor em entrevista aos jornalistas confessou: “Quando alguém faz algo terrivelmente errado e magoa os outros, ele/a deveria pelo menos se desculpar. E mesmo que ele/a escolha não proceder desta forma, ele/a deve ser punido/a pelo que fez. Não se trata de uma ideia política, mas apenas bom senso”. Se os sul-coreanos conseguem hoje, mesmo em meio às crises políticas, refletir e salientar a importância de destacar tais questões, o mesmo, infelizmente, não se pode dizer do caso brasileiro.

Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: http://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/vinganca-dos-filhos-de-gwangju/

Título: 26 anos
Título em coreano: 26년
País: Coreia do Sul
Direção:  Cho Keun-Hyun
Roteiristas:  Kang Pool (quadrinhos), Cho Keun-Hyun
Elenco: Bae Soo-bin, Han Hye-jin, Im Seul-ong, Jang Gwang, Jo Geun-hyun, Lee Geung-young
Duração: 2h15min
Lançamento: 29 de novembro de 2012
Idioma: coreano
Legendas: Inglês 

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por Anders Noren

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