Já foi abordado nesta revista a temática do Soft Power dos países e como ele pode estar aplicado ao cinema. Apenas para recordar rapidamente, este conceito indica a capacidade de um país de atrair e cooptar. Demonstra a sua habilidade de moldar as preferências alheias, conforme os seus objetivos. Em outras palavras, é fazer com que os outros incorporem como deles os seus interesses, valores e objetivos. O cinema é uma ferramenta poderosa para aplicação desta forma de poder. Através de suas estórias, baseadas em fatos reais, ou não, seus personagens, o visual, a sonoridade, a música são vários os artifícios que podem trabalhar com o imaginário e promover ideais que de modo bastante sutil vão sendo transmitidas constantemente para serem perpetuadas.
Assim, construímos as imagens de países, por exemplo, e de seus povos e culturas. Obviamente, muitas vezes não se trata de querer pintar a realidade como ela é, pois esta tem uma complexidade imensa e múltiplas facetas, sendo possível aos artistas e profissionais do cinema apenas representar uma parte deste real e sob a visão que imaginam dele, podendo, ou não, serem baseadas em suas experiências de vida.
As generalizações podem apenas impedir o conhecimento da pluralidade humana, pois nem todo o japonês, ou estadunidense, ou indiano, ou sul-africano tem o comportamento e o retrato que fazemos deles. A questão em jogo é justamente o interesse daqueles que estão fomentando estes esteriótipos com o objetivo de pensarmos como eles sobre as nações e culturas alheias, descrevendo-os e moldando-os para nós. A indústria que de forma clássica tem esta intenção é Hollywood, que propaga ao mundo, de maneira bastante eficaz, o retrato do que venha a ser, por exemplo, um cidadão nascido na Rússia, na China, ou no mundo árabe e islâmico.

Contudo, existe aquela parte do cinema que visa sempre fazer uma contrapartida destas superproduções cinematográficas, cujas bilheterias explodem mundo a fora: o chamado cinema independente, de arte e etc… ou que simplesmente apresenta uma ideia contrária ao status-quo. E mesmo que estas obras cinematográficas acabem contestando duramente algumas questões de seus próprios países, ou de outros, elas também são carregadas de Soft Power, e se as críticas são transmitidas de forma universal, mais poderosas e persuasivas podem ser.
É quando você faz a contestação e a negação de algo para reafirmar uma ideia. Por exemplo, um filme produzido por pessoas de uma país x decide falar de infração de direitos humanos deste próprio país. Para além de direcionar o foco para os problemas, ele incita a simpatia de quem em outras nações pode estar passando pelas mesmas dificuldades.
A ideia de que se está enfrentando e contestando permite às pessoas perceberem que, por mais dificuldades que existam, sempre há uma janela para a resistência, para a oposição, mesmo naquele determinado país. Por isso, temos em diversos momentos, filmes hollywoodianos abordando a falta de compromisso com a democracia dos próprios políticos dos Estados Unidos. Entretanto, sempre há aquele cidadão norte-americano comum que luta contra as injustiças, reafirmando os valores de que a liberdade e a democracia são cláusulas pétreas para a sociedade deste país. Isto corresponde a realidade? Talvez sim, talvez não! O essencial aqui é fortalecer a imagem de que assim se procede “na terra dos livres”, promovendo que tal ideia seja aceita e que a realidade aos poucos seja transformada para melhor, podendo, inclusive, esta ser também a real vontade dos próprios criadores do filme.

Este contexto pode ser encontrado na indústria cultural de outros países como o Japão, em especial em suas animações, os conhecidos animes. Até talvez mais do que o próprio Estados Unidos, o cinema e a produção de desenhos para adultos parece ser um espaço reservado aos artistas japoneses para melhor expressar todo tipo de sentimento e pensamento, muitas vezes de forma mais livre do que nos filmes live-action e doramas, em uma sociedade conhecida pela sua extrema rigidez. Tal situação promove, em diversos momentos, a passividade de seus cidadãos e a dificuldade, ou medo, provocados por uma timidez fora do normal, podendo ser esta uma das razões para as altas taxas de suicídios e de descontentamento, reclusão e solidão que os japoneses constantemente demonstram em pesquisas realizadas pelo próprio governo.
O Japão, mesmo que bastante polido, cortês e educado com a cultura alheia, parece ter ainda dificuldade de integrar e aceitar aquilo, ou aqueles que apresentam características diferentes das que está acostumado. São já clássicos aos que acompanham um pouco mais de perto a cultura que a família japonesa, as ditas mais conservadoras e tradicionais, não enxergam com bons olhos o casamento dos filhos com estrangeiros, ou até com pessoas, mesmo um outro japonês (a), não aprovadas pelos pais. Certamente não é um problema exclusivo dos japoneses, mas enfocamos neste exemplo para justamente falar sobre um anime, que de forma muito delicada, contesta tal situação e ganha o coração de muitos cidadãos do Japão e de outras pessoas ao redor do mundo.

“Tokyo Godfathers” foi lançado em 2003. Escrito e dirigido pelo conhecido e consagrado diretor Satoshi Kon, em co-direção com Shôgo Furuya, esta produção tenta incitar uma reflexão ao que venha ser uma família. Seria ela apenas a relação entre as pessoas do mesmo sangue? Poderia a família ser, ao contrário do que se pensa, também uma escolha? A sua união pode ser constituída por laços de empatia, amor e convivência?
Esta e outras tantas colocações podem ser feitas ao conceito tradicional de família, em tese: um conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar. Obviamente, os animadores aqui querem promover uma discussão bastante atual e universal. Afinal, o começo do século XXI caracteriza-se principalmente pelo repensar de vários dogmas e papeis sociais que foram estabelecidos há séculos mundialmente. Estão vinculados a eles a questão de gênero, da sexualidade, das relações humanas e, claro, sobre a ideia do que venha a ser e como é constituída uma família.
Pense particularmente e perceba que é possível ter relações mais profundas e íntimas com amigos, ou qualquer outra pessoa com as quais você não tem qualquer laço consanguíneo. No caso do enredo de “Tokyo Godfathers”, o alcoólatra de meia-idade Gin (Toru Emori), a fugitiva adolescente Miyuki (Aya Okamoto) e a ex-drag queen Hana (Yoshiaki Umegaki) são um trio de moradores de rua, sobrevivendo como uma família improvisada nas ruas de Tóquio. Enquanto vasculham o lixo por comida na véspera de Natal, eles se deparam com um recém-nascido abandonado em uma lixeira.
Com apenas um punhado de pistas para a identidade da criança, os três desajustados realizam uma verdadeira jornada pelas ruas de Tóquio, na busca pelos pais da criança. Nesta odisseia, os personagens acabam contatando com uma série de outros personagens que habitam este submundo dos incompreendidos e rejeitados, entre eles japoneses e estrangeiros que os auxiliam em diversos momentos. São os que se acredita serem incompatíveis com os padrões da sociedade japonesa, como ocorre em tantas outras nações ao redor do mundo. Pessoas que acabam por serem escanteadas e, de forma geral, desprezadas educadamente pelos nipônicos.
Tal temática bastante sensível sobre o real valor da família é tratada de maneira muito delicada e sem esconder as dificuldades de convivência e aceitação das falhas humanas alheias. Pois, o trio familiar discute, briga, mas ao fim permanece junto. E aqui é apresentada a questão chave, a mensagem maior: família são aqueles com os quais você mantém uma relação íntima e próxima independentemente do que acontecer, independentemente do que você venha a se tornar no futuro, seja você bem-sucedido, ou não.
São estas pessoas que provavelmente terão uma ideia mais aproximada sobre a sua personalidade, sobre a sua pessoa como um todo, e o aceitarão do jeito que é, com falhas e qualidades. Todas as suas peculiaridades, ainda que estas sejam constantemente ignoradas pelas regras sociais. Portanto, trata-se de uma reflexão que nega o conceito tradicional de formulação do seio familiar e implicitamente coloca a seguinte observação: há muitos casos de famílias que pouco se conhecem, ainda que convivam juntas sob o mesmo teto, ainda que sejam parentes de sangue.
Como pano de fundo, tem-se as contradições de um sistema econômico e político que explora as pessoas e descarta seus excedentes que não tiveram tanta utilidade. Este “excedente” é constituído pelos moradores de rua, os idosos, os não bem-sucedidos profissionalmente e etc, aqueles que se dão de forma geral “mal na vida”. São temas universais e, por isso, “Tokyo Godfathers” ganha até hoje forte repercussão.
Esta obra contém um espectro de Soft Power bastante amplo que apenas as barreiras internacionais do mercado de distribuição audiovisual, comandado por poderosos conglomerados, podem inibir sua propagação, impedindo que mais pessoas a assistam. Através desta animação é possível pensar um Japão mais aberto, não tão perfeccionista, com suas falhas, com a capacidade de rir de si mesmo e detentor de mais humanidade. Melhor Soft Power, impossível!
Direção: Satoshi Kon, Shôgo Furuya
Roteiristas: Satoshi Kon, Keiko Nobumoto
Duração: 1h32min
Exibição: 8 de novembro de 2003
Idioma: Japonês
Legendas: Inglês e português
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