Myong Chol, conselheiro norte-coreano: “a independência e a soberania são desejos inerentes a todo ser político”

O Conselheiro Político da Embaixada da República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) Myong Chol. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

“A humanidade, em todo o Globo, é, na realidade, uma grande família. Mesmo com as diferenças de ideologia, de sistema sócio-político, de crenças religiosas, somos irmãos, somos uma família, e neste sentido conversamos”. Desta forma, em um bom espanhol e de forma descontraída, o conselheiro político da embaixada da República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) Myong Chol iniciou a entrevista que concedeu exclusivamente para a Revista Intertelas e a Tribuna da Imprensa Sindical, na sexta-feira passada, dia 22 de fevereiro de 2019, por intermédio do Centro de Estudos da Política Songun – Brasil (CEPS-BR). Myong Chol, que está no Brasil desde 2015, acompanhou o embaixador norte-coreano no BrasiKim Chol-hak, no evento “Relações norte-sul na península coreana e a perspectiva de reunificação”, que ocorreu no dia anterior, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

A iniciativa, uma realização do CEPS-BR e do Instituto da Amizade Brasil e Coreia, contou ainda com a presença e as colocações do vereador pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) do Rio de Janeiro Leonel Brizola Neto, a presidente do Instituto da Amizade Brasil e Coreia Rosanita Campos e o presidente do CEPS-BR Lucas Rubio. Na ocasião, foram esclarecidas diversas questões como a primazia da Coreia do Norte em manter e proteger a sua soberania, resultado que aufere a partir da Política Songun, criada pelo líder anterior, hoje já falecido, Kim Jong-il. Esta política para além de uma simples medida militar, visa uma reordenação política e social de toda a sociedade coreana, promovendo uma relação intrínseca entre militares e os civis.

Da esquerda para a direita: Myong Chol, o embaixador norte-coreano no Brasil Kim Chol-hak, o vereador pelo Psol Leonel Brizola Neto, a presidente do Instituto da Amizade Brasil e Coreia Rosanita Campos e o presidente do Centro de Estudos da Política Songun – Brasil (CEPS-BR) Lucas Rubio. Crédito: Revista Intertelas.

Em outras palavras, diferentemente de como ocorre em outros países como o Brasil, que as forças armadas vivem praticamente isoladas do convívio de toda a população, criando inclusive instituições próprias como a justiça militar, na Coreia do Norte soldados e civis devem conviver e integrar a vida um do outro. Desta forma, os militares estão presentes no dia-a-dia da sociedade também como engenheiros, médicos, professores, andando a paisana, como um membro daquele coletivo social. Em contrapartida, ao cidadão civil é dada o treinamento militar que o capacita atuar prontamente frente à qualquer ameaça que o país possa sofrer.

Em grande parte, esta política anda em consonância com a filosofia Juche, cunhada pelo fundador da república Kim Il-sung que estabelece as bases para o fomento de uma nação socialista. Esta estrutura filosófica logrou, mesmo enfrentando todo o tipo de dificuldades e adversidades internas e externas, permanecer intacta, ao longo tempo. Com o advento da reunificação da península coreana novos desafios estão por vir não apenas para o norte, mas para o sul também. A conjuntura internacional atual pouco colabora, mas diferentemente do que se pensa, momentos de crise são os mais propícios para o avanço de iniciativas que antes pareciam impossíveis, justamente porque em um período conturbado tudo está para ser questionado e revisto.

Diferentemente do que muitos acreditam, a Coreia do Norte não pretende abrir mão de seu arsenal nuclear, elemento crucial que possibilitou a existência de sua república até os dias de hoje. Contudo, com a confiança de que novos rumos podem levar a situações mais positivas, não deixam de olvidar o caminho tortuoso que necessitam trilhar para finalmente chegarem a uma reconciliação com os sul-coreanos. Para tanto, é necessária uma estratégia que saiba lidar com os diferentes interesses e a presença de potências militares na região como Rússia e Estados Unidos, e também as econômicas como China e Japão, levando em conta o resguardo de sua soberania e o desenvolvimento do país. Confira abaixo, em mais detalhes, o que o conselheiro Myong Chol teve a dizer sobre estas questões que levam em conta o cenário internacional.

Myong Chol e a editora da Revista Intertelas Alessandra S. Brites. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

Qual a importância da atuação de China e Rússia para a reunificação coreana?

O papel que jogam tanto Rússia, quanto China, em relação à reunificação da península coreana é possível analisar sobre vários aspectos. Para nós coreanos, nos tempos passados, a União Soviética acabou sendo uma das duas partes responsáveis por dividir a Coreia. Naquela época, o contexto político da Guerra Fria promovia a manutenção da divisão política, junto com os Estados Unidos. No entanto, por mais contraditório que possa parecer, o poder que a Rússia tinha como União Soviética poderia dar-lhe mais estruturas de atuação e um poder mais decisivo no processo da reunificação coreana atual. Contudo, os russos acabam por ter sim um papel bastante ativo no processo de reunificação, ainda que com limitações. Mesmo que Vladimir Putin diga muitas coisas favoráveis, ele não tem o mesmo poder que um líder soviético teria, já que nesta situação incide a diferença entre o sistema capitalista e o socialista.

O presidente da Federação Russa, Vladimir Vladimirovitch Putin. Crédito: The Pensive Post.

Ainda assim, nós como coreanos nos sentimos agradecidos e respeitamos o critério dos russos e o papel que eles desejam ter no processo de reconciliação da península. Ao retomarem sua posição como potência, em especial militar, em questões importantes em todo o mundo, não apenas na Coreia, os russos promovem um equilíbrio de poder, de forças, essencial na atual conjuntura global, pois o anseio dos Estados Unidos de monopolizar o mundo é algo anacrônico. Com relação à China, desde o ano de 2017, ela ainda permanecia passiva. Contudo, após várias cimeiras entre Coreia e o país vizinho, este contexto mudou radicalmente para uma atuação bastante ativa. O papel dos chineses nesta questão é diferente dos russos, pois se trata de uma potência que reemerge e compete diretamente com os Estados Unidos, assim assume uma importância bastante significativa. Porém, tanto China, quanto Rússia, são parceiros que auxiliam a equilibrar a atuação dos Estados Unidos na península.

No entanto, e isso é sempre muito importante frisar, o dono, o comandante, o artífice, o autor maior deste processo de reunificação somos nós: o povo coreano.  China não pode ser a protagonista e até nem estar totalmente interessada nesta questão. Porém, a orientação do nosso líder Kim Jong-un possibilitou uma cooperação por parte dos chineses em apoio a uma política conciliadora com os Estados Unidos. Por isso, acredito que no momento, a colaboração da China poderá ser muito frutífera, apoiando a causa do povo coreano pela reunificação.

O ministro das relações exteriores da Rússia Sergei Lavrov conversa com o líder da Coreia do Norte Kim Jong-un em conferência. Crédito: NPR.

O projeto chinês de reconstrução de uma Nova Rota da Seda direta e indiretamente promove uma mudança bastante radical na estrutura de poder política e econômica mundial. Como tal iniciativa é vista pela Coreia do Norte?

 Sobre esta proposta chinesa apresentada de forma mais incisiva em especial pelo camarada Xi Jingping há vários comentários e análises também. Veja é uma iniciativa que almeja interligar diferentes regiões e povos através de uma rota apenas, que seria proveniente da Ásia. E tal medida vem ganhando mais força com o atual declínio das economias ocidentais, especificamente, os Estados Unidos. Certamente se pode averiguar a importância econômica, comercial e estratégica deste plano chinês. Mas vamos direcionar esta reflexão para o campo político-ideológico e a luta universal que nele persiste. Este projeto é um sonho secular dos chineses, deste leão que diziam estar permanentemente adormecido, mas que agora despertou. E creio que o mais significativo aqui é salientar que este leão, agora acordado, não é capitalista, e sim socialista, mas claro, com um caráter próprio da China. É importante lembrar que a implementação do socialismo e do comunismo não pode ocorrer como um manual único, em uma forma apenas de concretamente, materialmente estruturá-lo.

Kim Jong-un (E) e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês e presidente da China Xi Jinping (D). Crédito: Washington Times.

É preciso que se adapte este modelo ideológico às condições específicas de cada lugar, de cada nação, de cada país, pois o mundo compõe-se de diferentes populações, com diferentes culturas, histórias e visões. Portanto, não se pode aplicar este modelo socialista chinês como um manual, isso não é possível. Ao mesmo tempo, especialmente no campo ideológico, também é válida a afirmação, em especial em países capitalistas, onde há vários partidos que se dizem comunistas e socialistas e seguem diferentes linhas políticas e de pensamento que tal condição apenas fortaleceu o sectarismo. E este, historicamente, nunca auxiliou à causa socialista e comunista. Como expressavam Vladimir Lenin, Friedrich Engels e Karl Marx a luta socialista e comunista também necessita ser travada contra o sectarismo que existe no interior deste campo ideológico.

O socialismo chinês com seu próprio caráter vem aos poucos se consolidando, melhorando seu nível e sua posição no mundo, podendo inclusive já em várias oportunidades demonstrar a superioridade do socialismo e da economia estatal, ou melhor em que o Estado é o agente criador e dirigente das regras econômicas e não os capitalistas. Neste sentido, apoiamos o ideal chinês, mas tal suporte deve constar também a participação de toda a Coreia, não apenas da parte norte da península. De qualquer forma, é preciso dar suporte a esta iniciativa, pois esta já se encontra confrontada com o ocidente e os EUA constantemente afirmando que se trata de uma ameaça ao mundo. Esta atitude faz parte do processo histórico, em que um país tenta controlar a todos.

O mundo já assistiu ao surgimento e ao fim de diversos impérios: o mongol, o romano, o grego, o inglês e todos deixaram um dia de existir. Vários analistas já preveem a decadência deste poder dominador que os EUA almejam prolongar, alguns até chegam a afirmar que o próprio país possa vir a desintegrar-se. Alguns podem crer que tal afirmação seja muito radical, mas sobre ambição de poder norte-americana creio que tem certa razão. O Estados Unidos, como o Brasil, é um país multicultural, eu diria até multinacional dependendo do ponto de vista.

Sua capacidade de desenvolver economicamente se deu em grande parte por conseguir absorver muitas mentes geniais, de diferentes países. Algo extraordinário, mas o problema dos Estados Unidos é sua ambição de querer controlar a todos e impor um modelo que acredita ser o melhor para todos. O humano como um ser sócio-político tem o desejo inerente de ser independente e soberano. Lembremos que ser independente é diferente de ser soberano. Ser independente quer dizer ser livre, não ter um dono. Isso se pode conquistar com a luta armada, ou pacífica. Mas após conseguir a liberdade o que se deve fazer com ela?

É nesta ocasião que começa a luta para sermos soberanos. Ser soberano significa ser artífice, ter poder para decidir o seu próprio destino e conseguir com o seu próprio esforço este destino. Isso é a base da filosofia Juche norte-coreana. O destino final do ser humano deve estar em ser soberano através do seu próprio trabalho e isso não é o que ocorre em muitos casos. Veja a Líbia. Após a vitória de Muammar Mohammed Abu Minyar Gaddafi que prometeu melhorar a vida de sua população em especial com os lucros advindos do petróleo.

O ex-líder líbio Muammar al-Gaddafi. Crédito: Pambazuka News.

É certo que muitos líbios viram a vida materialmente melhorar, mas sem o trabalho real necessário. Isso não faz parte da formação do que venha ser um humano sócio-político. A base de um ser social está primeiro em ter consciência sócio-política, em saber que faz parte de um coletivo social, de uma sociedade que não pode existir, nem se desenvolver sem o papel ativo e criativo de cada um de seus membros. Infelizmente, na Líbia não houve esta conscientização da importância do trabalho, do desenvolvimento autônomo, tendo em mente que todo este esforço é parte de uma construção social coletiva, onde cada cidadão/ã é parte desta engrenagem na construção da soberania de um país.

Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

Fala-se muito sobre o modelo socialista chinês, o chamado Socialismo de Mercado, como uma proposta mundial para o futuro. A península coreana após a reunificação, já tendo experienciado tanto o sistema capitalista, quanto o socialista poderia no futuro também apresentar uma nova proposta de modelo político, social e econômico para o mundo?

O processo de reunificação é algo que necessitará de um longo prazo para ser consolidado. Portanto, esta pergunta só poderá ser respondida verdadeiramente por nossos filhos e netos. Agora, neste período histórico, o mais importante, o primordial é que a maioria dos coreanos, tanto do norte, quanto do sul tenham consciência de serem protagonistas da causa coreana. O processo reunificador chegou a um momento muito positivo, mas que foi postergado anteriormente por governos reacionários, contrários à reunificação. Para muitos coreanos, ainda persiste a ideia de que a reunificação só pode ocorrer com o apoio de estrangeiros, especificamente com o aval dos Estados Unidos. Por isso, trabalhamos ativamente hoje em dia para tentar remover esta mentalidade um tanto submissa a grandes potências, para conscientizar os coreanos de que a reunificação deve ser proveniente do esforço de nosso povo.

Lucas Rubio, presidente do Centro de Estudos da Política Songun – Brasil (E), Myong Chol (ao centro) e Alessandra S. Brites (D). Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

Esta é uma pergunta delicada, seria possível as relações entre Japão e Coreia terem novos rumos se outros grupos políticos no Japão, mais inclinados a promover uma aproximação e uma aliança real com os vizinhos chegassem ao poder, a exemplo do Partido Comunista Japonês, que possui expressiva representatividade no país? É possível o Japão tornar-se um parceiro da Coreia no futuro?

 Claro! O mundo, após várias gerações, chegará ao socialismo, no que diz respeito ao nível de desenvolvimento civilizacional, o que significa que os valores e a estrutura sócio-política e também econômica chegarão ao nível socialista, mais igualitário, que se almeja. Neste futuro contexto, o Japão certamente poderá ser um parceiro. No entanto, e em especial no que diz respeito ao processo de reunificação da península coreana atualmente, o Japão não pode ser um aliado, sendo ainda bastante posicionado aos interesses norte-americanos. E mais, o Japão é, na realidade, um inimigo secular da nação coreana como um todo, tanto no norte, quanto no sul. No passado, durante o período colonial e imperialista, eles tentaram eliminar o idioma coreano, impedindo-nos de falar a nossa língua e chegando ao ponto de retirarem nossos nomes e sobrenomes coreanos, substituindo-os por japoneses. Durante 40 anos de colonização, fizeram de vários coreanos seus escravos, as mulheres, em grande parte, escravas sexuais.

Oito milhões de coreanos foram obrigados a fazer parte do exército japonês. Por todos estes anos de exploração não houve compensação de qualquer natureza, nem mesmo qualquer pedido de desculpa, chegando a negar o que ocorreu. Eles ainda insistem no discurso que ajudaram no processo de desenvolvimento da Coreia, construindo minas, portos, ferrovias e outras tantas obras que foram utilizadas, na realidade, mais como base para produzir e transferir armas e, assim, invadir outros países. Portanto, o Japão neste momento histórico não pode ser um aliado. O povo japonês é outra questão, este sim poderá ser um parceiro, mas o governo não. Shinzō Abe, o primeiro-ministro atual, é, na realidade, um reacionário, mas dotado de grande astúcia. Ele emite palavras bonitas, mas suas ações não condizem com o seu discurso, infelizmente.

O presidente dos Estados Unidos Donald Trump (E) e o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe (D). Crédito: The Atlantic. REUTERS/Jonathan Ernst – RC1D3859A400

Em um cenário em que desponta uma segunda etapa da Guerra Fria, ou até uma Nova Guerra Fria, como a Coreia do Norte analisa e percebe a presente conjuntura internacional, inclusive para a reunificação coreana?

Esta situação ocorre em razão do imperialismo. A causa principal do imperialismo historicamente é agredir, expandir. Caso contrário, os impérios não poderiam desenvolverem-se como impérios, não existiriam, nem subsistiriam. Assim, é preciso explorar outras nações. Desta forma, frente à tal ameaça ambiciosa e expansionista as nações soberanas não podem ficar de braços cruzados, sem criar uma força auto defensiva. Esta situação apenas confirma a justeza da política Songun, da prioridade militar. Em um mundo com grandes potências militares como Estados Unidos, China, Rússia que se armam e competem, como pode os países territorialmente pequenos e com menor poder manterem-se soberanos, sem também formarem um sistema de autodefesa. Por isso, estaremos sempre agradecidos às políticas do líder e camarada Kim Jong-il, que fez da questão militar uma prioridade.

Myong Chol. Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

O Brasil e a América do Sul estão bastante longe da península coreana. Para alguns, esta questão não nos diz respeito. Que papel o Brasil poderia ter no processo de reunificação atual?

Nós não podemos pedir uma contribuição grande da parte do Brasil para o processo de reunificação, justamente porque o país está longe da península coreana. Mas desejamos, gostaríamos que o Brasil possa portar-se positivamente no cenário internacional, em especial, em instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), em apoio a nossa república, ao nosso governo. E não dando suporte unilateral a uma política hostil dos Estados Unidos, do ocidente, ou qualquer outro país que almeje o fim de nossa república.

A Revista Intertelas e a Tribuna da Imprensa Sindical agradecem especialmente a Lucas Rubio, presidente do CEPS-BR por possibilitar que esta entrevista ocorresse.

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por Anders Noren

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