
A presença de personagens miscigenados não costuma ser privilegiada nos dramas de televisão japoneses (doramas). Essa ausência torna-se ainda mais intensificada quando a mistura étnica ocorre entre japoneses e outros povos asiáticos, como chineses, coreanos e filipinos. Afinal, existe certa hierarquia embutida no termo “hafu” (half, em inglês. Palavra em japonês que serve para se referir a japoneses mestiços). Quando miscigenados com norte-americanos ou europeus, esses indivíduos são compreendidos como detentores de certo capital cultural, enquanto a mistura com outros asiáticos, principalmente de pele mais escura, a narrativa que se faz passa a se relacionar com problemas sociais.
Historicamente, o Japão adotou uma postura imperialista na Ásia e, justamente por isso, esses grupos étnicos são entendidos como “inferiores” em uma perspectiva nipônica. Uma das consequências do imperialismo japonês na região foi a intensificação de fluxos migratórios forçados. No caso filipino, por exemplo, a história de imigração está fortemente associada ao comércio sexual, principalmente por parte das mulheres. Já no caso coreano, muito é falado sobre as “mulheres de conforto” – situação que reverbera constrangimento e problemas diplomáticos até a atualidade – e sobre coreanos que eram obrigados a deixar sua pátria para serem escravos no Japão.
O debate em torno de personagens mestiços constitui uma ferramenta importante para colocar em evidência questões relacionadas à construção de identidade — tanto individual, quanto social —, bem como refresca a memória de um grupo minoritário e marginalizado, frequentemente escondido por uma suposta homogeneização dos traços nipônicos. Ainda que representantes de uma segunda ou terceira geração de imigrantes, mesmo nascidos e criados em território japonês, esses cidadãos muitas vezes não são entendidos como japoneses pelo olhar do outro — e, algumas vezes, sob a própria perspectiva. É nesse contexto que se insere a discussão presente no drama de TV “Smile” (TBS, 2009).
A narrativa segue a história de Hayakawa Bito (Matsumoto Jun), um japonês mestiço, por parte pai filipino e filho de uma mãe japonesa, que sonha em abrir um restaurante com pratos de diversas nações, pois ali seria um lugar onde, nas palavras do personagem “todos poderiam sentar na mesma mesa e sorrir”. Apesar de Bito ter nascido no Japão e não possuir contato algum com a cultura filipina, ele frequentemente é alvo de preconceitos por ser etnicamente diferente e chega a ser suspeito (e condenado) de crimes que não cometeu.

Em um dos julgamentos que foi obrigado a comparecer, Bito conhece o advogado Ito Kazuma (Nakai Kiichi), que também se mostra, a princípio, receoso da inocência do rapaz, devido a sua etnia. Porém, no decorrer da trama, o relacionamento entre Bito e Kazuma torna-se cada vez mais próximo e gera profundas transformações no advogado. Ele revela que também não era um “japonês puro”, pois era descendente de coreanos. Depois de passar por injustiças devido ao preconceito, Kazuma escolhe trocar de nome e esconder a sua verdadeira origem, pois não possuía orgulho de sua identidade.
Entretanto, ao ver Bito lidando com o sofrimento de ser um hafu sem se envergonhar de sua ascendência, Kazuma desiste de tentar esconder-se e adota, novamente, o seu nome coreano. O drama explora a relação entre esses dois personagens – um que não entende porque não pode ser reconhecido pela sociedade japonesa como um legítimo cidadão japonês e um outro que opta por esconder sua verdadeira identidade para não ser considerado “inferior” por ser diferente daquilo que se entende como japonês.

A representação de um personagem miscigenado em “Smile” está frequentemente relacionado ao olhar do outro. A construção do arco narrativo de Hayakawa Bito é conectada a percepção de outros personagens – uns que o enxergam como japonês e outros que não são capazes de compreendê-lo como um cidadão desse país. Curiosamente, os personagens que representam alguma esfera de poder (policiais, promotores, juízes) são aqueles que questionam a “japonesidade” de Bito.
Sem dúvida, esse plot questiona as “teorias da japonicidade” (nihonjinron), que recuperam sua força no Japão na década de 1970 (e reverberam até a atualidade), e que defendem uma suposta homogeneidade japonesa. Nesse sentido, tal vertente ideológica abafa conflitos internos, suprime minorias, apaga as noções de classes sociais e trabalham com a ideia de uma nação completamente homogênea e unificada. Além disso, borra-se questões históricas importantes para a construção da nação japonesa e se limita a pensar o Japão como uma entidade imutável.
O nihonjnron, por fim, delimita o que é ‘certo’ e ‘errado em uma conduta japonesa e tudo aquilo que for divergente simplesmente deixa de ser compreendido como “japonês”. Assim, ainda parece existir certa insistência japonesa em não se reconhecer como um lugar multiétnico. Tendência esta que vai ao desencontro das exigências contemporâneas do país, que enfrenta sérios problemas com a taxa de natalidade e que tem dado passos para uma maior aceitação de trabalhadores estrangeiros em seu território.
Também é curioso ressaltar que embora o drama de TV demonstre um olhar positivo acerca da miscigenação no Japão, a escolha do ator para viver a história de Bito não tem nada de “híbrida”. Matsumoto Jun, cantor da banda de J-pop Arashi, ao ser escalado para o papel, teve sua pele escurecida para viver um meio-filipino. Não se trata, no entanto, de uma completa invisibilidade de atores e idols miscigenados. Mokomichi Hayami (imagem abaixo), por exemplo, é um ator descendente de mãe filipina e pai japonês, que protagonizou doramas de sucesso como “Zettai Kareshii” (Fuji TV, 2008) e “Gokusen 2″ (NTV, 2005).

Decerto, a cobertura midiática de cidadãos miscigenados no Japão tem feito-se mais presente nos últimos tempos. Em 2015, Ariana Miyamoto, uma modelo descendente de um pai afro-americano tornou-se a primeira mulher miscigenada a conquistar o título de Miss Japão. A tenista Naomi Osaka, filha de um pai haitiano, também tem desfrutado de boa visibilidade midiática ao ter derrotado a norte-americana Serena Williams em 2018. Mas esses casos refletem uma mudança de postura na sociedade japonesa em relação aos hafus? As noções de “japonesidade” estão tornando-se mais plurais com a ascensão de japoneses miscigenados na mídia? O Japão está caminhando para uma maior aceitação desses grupos minoritários? Essas e outras questões, por ora, permanecem com respostas incertas.
Mayara Araujo
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF). Mestre em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do MidiAsia.
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