
A Guerra Fria é classificada por muitos apenas como um período de competição entre dois sistemas econômicos distintos. Contudo, ela foi muito mais do que apenas uma concorrência entre duas potências militares. Ela foi o embate entre duas propostas civilizacionais que possibilitou de forma indireta a libertação e inauguração de um novo mundo, com novas regras e novos valores humanos e sociais. Assim, o fim do mundo regido pelo imperialismo europeu daria espaço a um sistema internacional regido por leis universais que almejam promover a solução de controvérsias por meios pacíficos e garantir a estabilidade com o respeito a soberania e autodeterminação dos povos, duas clausulas que dão o maior sentido a existência das Nações Unidas.
No entanto, ao mesmo tempo que se avança em um patamar, em outro as mudanças são lentas e realizadas à forma tradicional. Mesmo enfraquecidos depois de provocarem uma guerra mundial, os europeus mantinham ainda seus domínios colôniais, em especial na África e na Ásia. Como líderes de um novo sistema, tanto União Soviética, quanto os Estados Unidos, os dois grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial, promovem um novo cenário que visa o fim do imperialismo clássico, abrindo uma janela para os movimentos de libertação nacionais em diversos países destas duas regiões.

A União Soviética desde a Declaração de Paz ao mundo, datada em 1917, de autoria de Vladimir Lenin, faz ode ao fim do imperialismo, levando a desconstrução prática do Império Czarista. Em 1918, o presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson levantaria 14 pontos subscrevendo as questões já argumentadas por Lenin. Para os EUA, uma ex-colônia da Inglaterra, o colonialismo europeu limitava muitos os seus interesses políticos e econômicos ao redor do Globo. Já para a URSS, o objetivo ideológico da Internacional Comunista e união dos trabalhadores ao redor do mundo também prevê que tal situação de dominação não tenha mais espaço neste novo cenário. Além disso, ambos também foram responsáveis por impulsionar o desenvolvimento tecnológico e científico, tanto no campo civil, quanto militar, fortalecendo seus papeis como líderes da Guerra Fria.
Os soviéticos ganham crédito histórico ao terem vencido o Nazismo e, mesmo com milhões de mortos, os números contam entre 20 a 35 milhões de pessoas, entre civis e militares, que perderam a vida e a destruição material provocada durante a Segunda Guerra, estariam, em alguns anos, prontos para levar a humanidade ao espaço. Já os Estados Unidos, em razão da Grande Depressão Econômica de 1929 e da competição soviética lança ações que vão fortalecer em parte o Estado de Bem-Estar Social dos EUA com o New Deal, inaugurando o estilo americano de viver que influenciaria grande parte do mundo. Tal proposta estava embasada em uma nova concepção de relações de poder entre os países: um controle econômico indireto daquelas nações de economia mais forte sobre as mais fracas. Isso implica que, ao menos teoricamente, nesta visão ideológica a independência política das nações mantém-se resguardada.

Já nos países do chamado terceiro mundo, dominados pelas metrópoles europeias, as forças nacionalistas vão emergir. E mesmo com a conquista da independência, as divisões internas históricas permanecem e acabam sendo enquadradas neste novo contexto de disputa civilizacional mundial perpetuado pelas duas potências. Existem os que almejam manter o modelo capitalista, mesmo que em uma linha ainda bastante submissa a outros países, e outros que almejam uma revolução que garanta a libertação das classes mais oprimidas e construa uma soberania, um país e uma sociedade com outros moldes de relações sociais, que, teoricamente, sejam menos exploradoras.
É neste contexto que a história da animação documental “Mais um dia de vida” (2018), dirigida por Raúl de la Fuente e Damian Nenow, acontece. Ganhadora do prêmio de melhor longa-metragem no Anima Mundi deste ano, esta obra é uma adaptação ao cinema da obra do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, um dos maiores repórteres de guerra do século XX. Em 1975, ele é enviado para Angola. Os portugueses, ex-colonizadores do país, perderam a guerra e seus cidadãos estão voltando a Portugal. Os movimentos de libertação iniciam uma guerra civil. Luanda, capital do país, é transformada em cidade fantasma sitiada. Como em diversos outros exemplos históricos, Kapuscinski acaba por testemunhar o nascimento de um novo país.

Porém, diferentemente do que muitos poderiam esperar, esta produção acaba por contar mais sobre a experiência do repórter e retratar sua personalidade, do que o conflito angolano em si. Até os personagens históricos locais, que existiram na vida real, acabam sendo mais coadjuvantes e servindo de base para descrever um pouco as aventuras do jornalista, de um cidadão europeu que vai ao Terceiro Mundo para provar um pouco de caos, confusão (palavra muito usada no filme e que caracterizada a dinâmica que compõe toda a obra) e adrenalina.
Mesmo se tratando de um indivíduo pertencente ao mundo socialista e não ao chamado na época de Primeiro Mundo, alguns poderiam argumentar que tal situação não passa da história bastante conhecida daqueles que ao buscarem aventura em outra região do mundo, acabam provando uma grande dose da dura realidade e crueldade humana. Como o crítico do Hollywood Reporter Jonathan Holland muito bem coloca: Kapuscinski é apresentado de forma bastante estereotipada, em uma visão monodimensional do escritor, ainda que se tente usar de artifícios como suas reflexões políticas e sonhos, a profundidade que se esperava de um heroi tão complexo acaba não sendo retratada na tela. A complexidade humana do filme resulta em permanecer com os personagens secundários que, como já dito, acabam ficando em segundo plano.
Contudo, o enredo em si também, talvez até sem ter a intenção, promove uma discussão importante sobre jornalismo, imprensa e política. Fatores decisivos que transformam, mas ao mesmo tempo colocam em xeque velhas concepções que provavelmente nunca foram verdadeiras na prática como a ideia de imparcialidade política e jornalística. Em especial, esta discussão é bastante aplicada durante a obra, durante a implementação da chamada Operação Carlota, a cooperação militar cubana em Angola com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de orientação socialista.
O objetivo era expulsar as tropas da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), apoiadas pela África do Sul e da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), que tinha o suporte do Zaire. A cooperação e intervenção de Cuba durariam 16 anos e também se estenderiam para outras áreas além da militar, com a presença de médicos, engenheiros e professores cubanos no país. Na complexa situação que um repórter de guerra pode encontrar-se, em especial quando tem acesso a informações chaves, a tomada de posicionamento em seguir com as regras de conduta da profissão, ou não, acaba incitando um debate importante de quanto a mídia e sua atuação tem papel central e decisivo, podendo transformar a realidade momentânea e consequentemente a história.
Assim, é possível refletir o quanto a imprensa realmente contribuiu, ou está contribuindo para formação de um cenário mundial mais pacífico. O quanto o papel de um jornalista incide sobre o futuro de um conflito, às vezes colaborando mais para que se perpetue a situação de exploração do que resolvê-la. Por sinal, desta forma o também jornalista Michel Herr, que cobriu a Guerra do Vietnã classificou a atuação da imprensa em geral na cobertura deste conflito. Uma mídia que mais alimenta o fogo que se alastra, do que colabora para que seja extinguido.
No caso do jornalista polonês, para além do registro que ele deixou do surgimento e nascimento do chamado Terceiro Mundo, está a constatação de que o profissional da imprensa, acima de tudo, é como qualquer outro indivíduo que compõe um conjunto social, ou seja é um agente político e social, que acaba tendo sim de escolher um lado da história, como o contexto político e social internacional assim demanda.
Direção: Raúl de la Fuente e Damian Nenow
Duração: 1h25min
Lançamento: 26 de outubro de 2018 (Espanha)
Idioma: inglês, português, polonês e espanhol
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