
Em 2019, nenhum outro país depois dos Estados Unidos tem sido alvo de tantas atenções por suas polêmicas quanto o Brasil. A posição de bom moço, histórica do país nas relações internacionais, tem sido substituída por uma outra completamente oposta, mas que de certa forma expõe a atual crise das organizações internacionais pós-1945. O país, igualmente em crise com a desregulamentação de suas instituições internas devido a poderosa terapia de choque neoliberal imposta, mediante a uma grave crise do sistema liberal democrático, encontra agora a exposição cada vez maior dessa ferida, talvez mesmo o olho do furacão, dentro da situação existente na Amazônia.
O aparecimento de diversos protestos nacionais e internacionais mediante ao acentuamento das queimadas na floresta amazônica convergem com duas questões importantes, mas até agora pouco abordadas nas análises gerais. Onde a primeira trata-se de compreender que isso se deu em um momento peculiar da crise institucional brasileira, e a segunda que, isso ocorre também dentro de um cenário de acirramento das disputas imperialistas por recursos naturais pelo mundo. O debate sobre a Amazônia foge a discussão puramente ambiental, trata-se de uma grave questão política.

Embora no Brasil, o fenômeno das queimadas fosse presente há décadas, seu visível crescimento ao longo do ano corrente deu-se sobretudo por ocasião da desregulamentação das instituições de fiscalização promovida pelo presidente Jair Bolsonaro. O discurso triunfante das eleições de 2018 do tudo está liberado é um ingrediente importante que contribuiu para a intensificação das violações ambientais e acentuamento dos ataques as reservas indígenas. No entanto, nunca deve ser esquecido que todo este processo é consequência de uma crise política e institucional causada pelo violento golpe de Estado de abril de 2016, que ao rasgar a Constituição de 1988, mergulhou o país em uma anarquia- no sentido real da palavra- dos poderes que leva a um estado de caos constitucional que possibilitou a ascensão de Bolsonaro e do Lavajatismo.
Importante é compreender que a coalizão golpista de 2016 foi possível em grande medida porque existiam interesses internacionais também em jogo naquele período. A nova posição assumida pelo Brasil nos anos 2000, cuja direção conflitava com algumas posições históricas dos países ocidentais, ajudava na construção de uma nova ordem mundial oposta. A resposta violenta assumida pelos países do ocidente, especialmente a partir da Crise de 2008 com a intensificação das guerras e desestabilizações de outras nações pelo mundo, possuía uma fusão de elementos múltiplos, cujo objetivo central era a destruição das instituições soberanas destes Estados. Uma estratégia que abrangeu inclusive o Brasil.

A derrubada do Partido dos Trabalhadores (PT) do poder, seguida de um verdadeiro assalto ao que existia de empresas nacionais promovida pela Operação Lava Jato, que destrói as principais empresas da área de construção civil, inclusive o agronegócio, veio seguida de uma série de leis excessivas orientadas por um neoliberalismo agressivo. Contudo, a ausência de sustentação política e jurídica do novo regime põe o país em uma situação calamitosa, pois enquanto os três poderes engalfinhavam-se, o Lavajatismo triunfava com o seu projeto de Estado de exceção. Esta situação interessava as forças políticas internacionais que desejavam recolocar o Brasil sob a órbita dura da ’’bota’’ do ocidente.
A partilha do pré-sal, seguida de privatizações pouco transparentes, e mesmo a crise dos combustíveis, não foram alvo de grande atenção internacional. A ruptura das barragens em Mariana e Brumadinho até hoje não foram dignas de uma única declaração, nem ao menos desculpas das empresas internacionais que estavam por trás de tais empreendimentos, até porque elas estão em muitos outros locais de Minas Gerais, Goiás e Bahia. Em todos os desastres, estes países sempre retiraram-se ’’lavando as mãos’’, recaindo a culpa apenas sobre certas figuras chaves da região, quando na verdade, a culpa da depredação também vem do lado externo. Que proclamação mais significativa para resumir a situação de crise na Amazônia que feita pelo próprio ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que disse que a Amazônia precisa de capitalismo! Recado mais claro que este não existe para as empresas legais e ilegais, nacionais e internacionais.

A percepção hipócrita, cujo uso é político do tema ambiental por estes países, tem como objetivo apenas de permitir a posse das reservas de recursos naturais da região. A Amazônia, como o Oriente Médio possui recursos valiosos, não apenas do ponto de vista mineral ou de plantio para certos setores, mas acima de tudo sua biodiversidade que fornece usos farmacológicos e cosméticos sem precedentes- não é por acaso que Alemanha e França sejam as grandes ’’inimigas’’, pois abrigam grandes centros de pesquisa e comércio de ambas as áreas. A Amazônia possui ainda, a maior bacia de água doce do planeta, algo que por si só eleva a importância do Brasil- independente de seu presidente-, visto que países na Europa e mesmo os Estados Unidos na próxima década terão dificuldades de acesso a água potável.
Os interesses europeus na Amazônia inclusive são de longa data, conhecidos apenas por alguns militares brasileiros e historiadores que pesquisam sobre a historia da região. Curiosamente, no norte da América do Sul, isto é, abrangendo parte da Amazônia encontram-se ainda três administrações coloniais europeias, a Guiana Inglesa- parcialmente independente-, o Suriname e a Guiana Francesa. Adquiridas entre os séculos XVII e XIX pela Inglaterra, Holanda e França, essas regiões, localizadas em saídas de rios do Rio Amazonas, eram extremamente estratégicas por permitirem a ação de corsários, porém faziam parte também da rota do comércio caribenha criada pelos comerciantes de escravizados.

A França e Inglaterra ao longo do século XIX e início do XX tentaram expandir estes territórios para dentro da floresta amazônica. Na Venezuela, os ingleses abocanharam a Guiana Essequiba e praticamente dobraram seu domínio territorial na região na sequencia das lutas políticas internas no país. Os franceses escolheram tentar expandir-se pelo Amapá para ter acesso direto a saída do Rio Amazonas para o Oceano Atlântico, enquanto que o Brasil vivia dias de revoltas e instabilidade por ocasião da emergência da República. porém devido a maior força e organização do país, a anexação não foi possível.
A Amazônia desde então é um alvo de atenção especial da política externa brasileira, onde apesar do país ter consolidado suas atuais fronteiras com base na diplomacia do Barão de Rio Branco (1902-1912), ainda é alvo de interesses externos. Com exceção as guerras no Chaco (1932-1935) e Malvinas (1982), todos os outros conflitos armados ou litigiosos na América do Sul foram nas fronteiras da região amazônica: Acre (1903), Peru-Colômbia (1932-1933), Peru-Equador (1941) e a Guerra das Lagostas entre Brasil e França (1961-1963). A maior ligação entre estes conflitos é justamente o acesso as saídas da floresta amazônica e ação de empresas de extração minerais ou de recursos naturais.

A campanha da década de 1990- concomitante a nova corrida colonial dos Estados Unidos- de tentar internacionalizar o cuidado da Amazônia não obteve sucesso, pois apesar das crises política e econômica do período, a estabilidade institucional brasileira permitiu uma reação interna e externa importante. No entanto, esta campanha forçou o Brasil a assumir importantes compromissos junto a comunidade internacional, especialmente durante a presidência do Fernando Henrique Cardoso, que por sua vez era muito próximo do presidente Bill Clinton- ’’garoto propaganda’’ do ambientalismo.
O interesse de ocupar a região, contudo ainda não cessou, e nas últimas décadas o fenômeno da biopirataria, sobretudo com o comércio ilegal de animais silvestres e patentes de plantas medicinais tem sido outro grande problema da região. As principais rotas de saída desse contrabando, dá-se justamente pelas guianas colonizadas pelos países europeus, onde a fiscalização é baixa. Algo que muitos auto declarados ambientalistas assim como os próprios ufanistas do bolsonarismo ignoram. Há anos, institutos de pesquisa brasileiros, como a Fundação Oswaldo Cruz por exemplo- que agora também não tem mais recursos para pesquisa-, contesta essa realidade, e tenta adaptar-se a um cenário onde a política brasileira para patentes é atrasada, assim como a proteção a biodiversidade é bastante limitada.

Contudo, a desintegração do pacto federativo, ocasionado pela dissolução do pacto constitucional de 1988, torna este cenário ainda mais perverso. A nova estratégia do imperialismo de destruir as instituições soberanas que mantém os requisitos minimos para o funcionamento de um Estado, com o fim de se apossar diretamente de recursos materiais, humanos e naturais, faz parte de uma guerra de novo tipo, a Guerra híbrida. Esta guerra- que o Brasil hoje está submetido também- utiliza de maneira mesclada diversos instrumentos e técnicas que perpassam desde a semiótica por meio midiático e informacional, até mesmo as tradicionais pressões econômica, política e militar.
Praticada em larga escala no Oriente Médio, tem na Líbia um exemplo bem sucedido, com a ampla destruição do Estado, e sua fragmentação política, que permitiu a ação de grupos internacionais, no sentido de se apossarem dos recursos naturais e materiais- embora este controle por enquanto não seja tão sólido por causa da diversidade de grupos fragmentados no país. No entanto, existe um outro exemplo melhor, e que envolve inclusive a França, na sua tentativa de reativar a política colonial, que é a atual ocupação militar no Mali.

Após o triunfo de grupos terroristas na derrubada de Muammar Kaddaffi e a desintegração da Líbia em 2011, o Mali- um país saariano- passou a ser alvo de ação dos mesmos grupos. Em 2012, após um golpe de Estado, apenas meses antes das eleições presidenciais, o país entrou em ebulição com o levante de grupos terroristas ao norte que declararam a constituição do Estado Islãmico do Azuade. Como na Líbia, os grupos recebiam apoio bélico e logístico de países ocidentais, em especial da França, porém, com o fortalecimento destes grupos, tornando possível nascer mais um Estado desintegrado que fosse ninho formador de terroristas na região, mas sobretudo levando em conta interesses econômicos no país, a França forma uma coalizão militar de ocupação em 2013.
Ainda que dadas as diferenças entre a o Mali e o Brasil, a França historicamente é um país que sempre levou adiante empreitadas militares coloniais neste estilo. O momento de instabilidade e decadência das instituições brasileiras, aliada a submissão política total ao ocidente faz com que o país também seja tratado de forma inferior a outras potências. O presidente Emmanuel Macron, em um gesto de boa fé poderia ter convidado Jair Bolsonaro para a reunião do G7 para discutir o caso da Amazônia, mas deixou de fazer, não por considerá-lo desprovido de condições cognitivas para discussão- algo que grande parte do mundo pensa ser-, mas para tentar achar ’’saídas coloniais’’.

A cedência da base de lançamento de foguetes e satélites em Alcântara, no Estado do Maranhão, feita sob relação de subserviência vai muito além de um alinhamento instantâneo ao ocidente, é um aviso a outras potencias que o Brasil está sendo não apenas vendido, mas partilhado. A própria localização da base, próxima a entrada do Rio Amazonas é estratégica do ponto de vista geográfico e militar, ampliando as condições de mapeamento da região amazônica e do próprio sudeste do caribe. Essa política externa submissa, aliada a desintegração institucional como fruto da crise do pacto federativo, enquanto consequência da Guerra híbrida, leva-nos ainda a repensar um exemplo histórico, ainda que radical.
A Dinastia Manchu– última do Império Chinês- submeteu a China as potências estrangeiras após várias guerras, bloqueios e reivindicações extraterritoriais, que embora não tenham desintegrado o país, pôs o mesmo em uma relação de caráter colonial. Contudo, até chegar este estágio, o país passou por um processo de desestabilização de caráter externo e interno, incitando a divisão entre lideranças militares, tornando seus líderes de Estado meras figuras decorativas. Mesmo depois da Revolução Xinhai em 1912, o país ainda demoraria praticamente quatro décadas para restabelecer sua soberania continental com os comunistas em 1949, e mesmo assim partes do país continuariam ocupadas até o fim do século XX, como Hong Kong e Macau, mesmo a situação de Taiwan que ainda se encontra em aberto. Este exemplo demonstra que ainda que fosse uma histórica potência econômica, política e militar, a China pode ser submetida.

Partindo do mesmo princípio, e tendo que ter atenção ao exemplo histórico citado, não se pode subestimar o atual momento vivido pelo Brasil, que coincide com um estágio agressivo de corrida colonial no mundo. Embora Bolsonaro critique as atitudes e termos com que o presidente francês usa para relacionar-se com o país, ele mesmo não oferece outra solução, pois seu alinhamento automático com o ’’bastião de defesa da civilização ocidental’’, o presidente estadunidense Donald Trump, o leva a acreditar que os interesses brasileiros serão defendidos no melhor estilo da Doutrina Monroe. Entretanto, o capitão visivelmente desconhece lições históricas de semelhantes situações no continente americano, onde os Estados Unidos foram coniventes com as ações agressivas de países europeus na região, como na Guerra das Malvinas, quando a OTAN permitiu que os britânicos retomassem as ilhas Malvinas dos seus aliados argentinos.
O perigo de desconhecimento da história, a ignorância da ciência, e mesmo subestimar a realidade internacional, é o que tem levado há séculos, Estados inteiros ao colapso. Dizer isto hoje não se trata apenas de constatação, mas de um aviso. Os resultados da política do tudo está liberado tem sido, e poderão ser ainda mais terríveis, pois apesar dos usos políticos feitos no discurso ambientalista, é necessário saber que as consequências da destruição, ou diminuição da floresta amazônica são não apenas irreversíveis, mas radicais, em especial para o Brasil e os países amazônicos.

A relação dos seres humanos com o meio ambiente e seus recursos, historicamente demonstra que é possível que sociedades extremamente avançadas na técnica e ciência, possam desaparecer mediante a crises ambientais. Foi assim com a importante cidade de Mohenjo-Daro na Antiguidade, que graças a mudança de curso do rio Indo, passou por uma grave crise tanto no abastecimento de água da cidade, como agrícola, forçando seu abandono em poucos séculos. Ainda na Ásia, a próspera Kunya-Urgench, importante entreposto da Rota da Seda, e capital do Império Corásmio durante a Idade Média, foi igualmente abandonada por transformações ambientais geradas pela mudança de curso do rio Amu-Darya. Isso para não citar-se o famoso caso do Mar de Aral que afetou o clima de boa parte da Ásia Central.
Por décadas, a América Latina discutiu o conceito de desenvolvimento sustentável, que embora possua contradições, pois é uma abstração conceitual muitas vezes pensada sob orientação ideológica dos países centrais do capitalismo, ele eleva a importância do debate da relação dos humanos com a natureza. Contudo, a aderência geral atual a ideia de ultra-extrativismo na Amazônia, concebendo-a como uma espécie de ’’velho oeste’’ brasileiro a ser desbravado- ideia desenvolvida sobretudo na ditadura-, é consequência do enfraquecido debate sobre a questão ambiental, que jamais cogitou mesmo superar a ideia de desenvolvimento liberal hegemônica. Portanto, é necessário superar estes antigos paradigmas, construir novos conceitos sobre o que é desenvolvimento, felicidade e bem estar como alguns países não ocidentais vem fazendo. Apenas assim será possível estabelecer uma política ambiental alternativa. Contudo, este já é outro tema.
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Documentários e discussões:
Biopirataria. In: TV Brasil. Programa Caminhos da reportagem
Biopirataria. In: TV Justiça. Programa Meio Ambiente por Inteiro
Brasil: incendio en Amazonia, resultado de politicas de Bolsonaro. In: Telesur
El Brasil de Bolsonaro. In: RT Español. Programa En la mira
Explican expertas qué causó el incendio de la Amazonía. In: Telesur. Programa Jugada Critica
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