O cinema de Steven Spielberg e o medo estadunidense do estrangeiro

Cena de “O Tubarão” (1975). Crédito: https://fromdirectorstevenspielberg.com

É desnecessário escrever a importância de Steven Spielberg para o cinema contemporâneo. Verdadeiro inventor do Blockbuster como estratégia de distribuição e fenômeno da cultura pop, ao lançar o já clássico Tubarão (Jaws) em pleno verão de 1975. Sua filmografia comporta muitos dos maiores sucessos de bilheteria de todos os tempos. De quebra, formou, lançou e influenciou muitos cineastas mundo afora.

Muito provavelmente o homem mais importante de Hollywood em todos os tempos, pela forma como ele a influenciou e ditou sua nova lógica criativa-empresarial, Spielberg tem, na sua trajetória, a evolução gradual que vai desde o irrequieto e brilhante diretor dos seus primeiros filmes, até a maturidade intelectual e artística dos anos 1990 e 2000. Nos últimos anos, o Spielberg produtor e empresário, assoberbado pelas responsabilidades oriundas dessas funções, encabeçando muitos projetos no cinema e na televisão, vem lançando filmes sem o mesmo brilho e ou encanto de outrora.

Steven Spielberg no set de filmagem de “O Tubarão” (1975). Crédito: https://fromdirectorstevenspielberg.com

Obviamente, alguém tão relevante e onipresente na indústria não está livre de críticas. Dado a sua vasta filmografia, ele coleciona acertos e erros, o que é natural para alguém tão produtivo, ainda mais em uma arte que se equilibra entre aspectos e interesses tão comerciais e artísticos. Mas não é o interesse do texto discutir os vícios narrativos e de linguagem do diretor. E também celebrar aquilo que ele fez de distintivo. Minha intenção aqui é compartilhar uma observação sobre uma característica fundamental e recorrente da filmografia de Spielberg, que se confunde muito com um tema profundamente estadunidense: o medo do desconhecido e do perigo oferecido pelo estrangeiro, e a necessidade imperativa de regressar para a segurança da “casa” (nação, cultura, família etc).

Esse tema, presente na história daquele país desde sempre (e historiadores, sociólogos e antropólogos teriam mais condições de discutir o assunto), encontra-se em quase todos os filmes do diretor, o que explica seu sucesso absoluto de público nos Estados Unidos. Talvez de forma intuitiva, Spielberg soube, como ninguém, tocar nos códigos culturais dos Estados Unidos e revela-los para o cinema. E, como a hegemonia cultural daquele país se fez (ou se completou) na consolidação do processo de “Globalização”, a cultura estadunidense tornou-se norte e referência para muitas outras. Logo, Spielberg tornou-se universal, mesmo conservando em sua narrativa, na essência, valores, sonhos e temores tão próprios do seu país de origem.

Crédito: https://fromdirectorstevenspielberg.com

Outra explicação para o seu sucesso reside em outros temas que o diretor explora e domina como poucos: o sonho idílico da inocência infantil, a dor do amadurecimento, a dura relação com o universo adulto, a família (nuclear) como valor e objetivo maior. No seu primeiro filme, ainda para a televisão, o jovem diretor assusta o mundo com o brilhante “Encurralado” (Duel), de 1971, onde um motorista sai de sua casa e é perseguido, em uma estrada vazia, por um misterioso caminhão preto, que sem motivo aparente persegue o carro de um assustado motorista (Dennis Weaver).

No filme “Tubarão” (Jaws), o delegado Brody (Roy Scheider) só pensa em voltar vivo para a sua família, e o oceano vasto e inóspito esconde uma fera gigante e ameaçadora. Seguindo os passos do mestre Alfred Hitchcock, da fera mal se vê. O suspense revela-se asfixiante pelo que se imagina. O desconhecido nos intriga e aprisiona. Nada mais spielberguiniano… Seu filme “ET – o Extraterrestre” (E.T. the Extra-Terrestrial) de 1982, para muitos seu grande filme, um alienígena inocente e perdido torna-se o melhor amigo de um garoto de no máximo dez anos. Qual criança não sonhou viver experiência semelhante?  Eu, que assisti ao filme no cinema, sofri dolorosamente de saudade por ET, esperando que ele um dia voltasse. O filme marcou uma época e toda uma geração. E o seu final, pleno de carga e intensidade emocional, resolve os grandes temas do universo do diretor: a volta para a casa e a exaltação do universo infantil.

Outros (muitos, na verdade) filmes do diretor seguem a mesma narrativa e resolução do seu arco dramático. Destaco “O Resgate do Soldado Ryan” (Saving Private Ryan) de 1998, quando a missão do pelotão consiste em resgatar um soldado do inferno no front e levá-lo para casa, os Estados Unidos, verdadeiro santuário do diretor. Ou, “Guerra dos Mundos” (War of the Worlds) de 2005, onde, em meio ao apocalipse eminente da humanidade em função de uma invasão alienígena agressiva e tecnologicamente superior, o personagem Ray Ferrier (Tom Cruiser) só pensa em conduzir os filhos, em meio ao caos, para um lugar seguro. Aqui estão: o medo do outro (o alienígena) e o ideal familiar como ideologia radical de seu universo.

Destacaria também “Jurassic Park” (Parque dos Dinossauros), de 1992, uma alucinante aventura plena de códigos caros ao diretor. A pureza infantil, simbolizada pelos netos do empresário John Hammond (Richard Attenborough), ameaçada pela irresponsabilidade e ganância dos “adultos”. Os dinossauros (e confesso que foi o primeiro filme que me fez ficar extasiado com os efeitos visuais), verdadeiras representações dos medos e ameaças da vida adulta, são selvagens e o terreno, inóspito. Uma terra estrangeira (uma ilha na Costa Rica) cheia de perigos. No final, em um helicóptero (representação simbólica da segurança dos Estados Unidos – a “casa”) leva as crianças e os poucos adultos sobreviventes para longe dali.

Quando Spielberg subverte seus próprios mandamentos, o faz de forma brilhante, mesmo sendo assolado pelo arrependimento. No filme “Contatos Imediatos do 3º grau” (Close Encounters of the Third Kind) de 1977, o personagem Roy Neary  (Richard Dreyfuss), pai de família e o típico americano médio, larga tudo (sobretudo a família) e se entrega ao fascínio por descobrir o desconhecido. O filme se encerra de forma anti-spielberguiana, quando Neary entra na espaçonave alienígena e parte para o universo. Em uma entrevista, anos atrás, o diretor disse que esse final seria outro, se o filme fosse realizado alguns anos depois. Ele, como pai de família, não poderia conceber tal atitude. Provavelmente encerraria o filme de outra forma.

Mas não foi somente em “contatos” que o diretor ousou contrapor seu próprio universo. Filmes como Minority Report (2001) e Munique (2005) são importantes por investirem contra os limites e contradições daquilo que podemos dizer como “casa” ou, se preferirmos, os próprios Estados Unidos e o seu discurso simbólico e ideológico como centro “do mundo livre”. Mas, na minha opinião, o grande filme político de Spielberg é o aclamado “A lista de Schindler” (Schindler´s List) , de 1993.

Talvez o seu projeto mais pessoal, o filme emula algumas estruturas do cinema de Spielberg para o contexto do holocausto. O nazismo é visto como uma força de perversão quase desconhecida, um mal sobre o qual o filme não tenta explicar. Mas, as agruras dos personagens judeus do filme, após mais de 3 horas de sofrimento terrível, terminam quando eles, os sobreviventes, seguem o conselho de um soldado soviético, e seguem para um novo lar, uma nova “casa” (no sentido de proteção, de pertencimento, de santuário), Israel. Aqui Spielberg revela sua visão sionista para o drama judaico na Europa. O encerramento preferido do diretor para os seus arcos dramáticos. A volta dos judeus para a Israel quase bíblica. Visão essa que ele, mesmo timidamente, criticaria em “Munique”.

Quase encerrando este texto lembro-me da franquia “Indiana Jones”. Em um primeiro momento (ao menos nos dois primeiros filmes), Spielberg lida com alguns aspectos pouco comuns em seu universo. Jones é um homem solteiro, aparentemente feliz por essa escolha. Além disso, sente um desejo irrefreável pelo estrangeiro (aqui uma coincidência com alguns dos seus mandamentos: estrangeiro como sinônimo de perigo), quase sempre o Oriente (Olha o Edward Said ai gente…) colorido e exótico. Roça com a literatura de Joseph Conrad e Rudyard Kipling, que enxergam na relação com o outro e sua natureza inóspita, uma forma galante de viver um vasto mundo, conservando os traços inauditos do colonizador.

Talvez por ser um projeto em conjunto com George Lucas (que adora o exótico e a fantasia do diferente), os dois primeiros filmes posicionam-se relativamente distantes dos principais arquétipos de sua obra. Mas, quando se dá o afastamento de Lucas (a partir do 3º filme da série – Indiana Jones e a última Cruzada, de 1988), Spielberg começa a adicionar elementos do seu repertório temático. E se no 3º filme Indiana encontra o Pai, no 4º filme da série o diretor encerra o arco dramático do personagem, onde ele encontra sua família, perdida no tempo e experimenta a completude na vida familiar.

Nos últimos anos, até de forma burlesca (assim enxerguei), o diretor lança o problemático “Cavalo de Guerra” (Horse War), de 2011, quando Spielberg cai no vazio do seu tédio criativo ao narrar as desventuras de um cavalo (sim…de um cavalo) na sua jornada errática como propriedade de exércitos britânicos e alemães durante a I Grande Guerra, até o merecido retorno ao lar, ao porto seguro, assim como o protagonista e seu dono, Albert Narracott (Jeremy Irvine). Um filme que resume, no uso intensos de recursos e temas óbvios, a essência da pouca inspiração de seu diretor, que quando acerta, produz filmes vigorosos e intensos (mesmo que, aqui e ali, considerados juvenis), ao passo que, por seus vícios narrativos cada vez mais repetitivos, quando erra, produz uma espécie de frustração e saudade do outrora realizador criativo e único.

Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2015/11/18/o-cinema-de-steven-spielberg-e-o-medo-estadunidense-do-estrangeiro/

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por Anders Noren

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