
A cidade de Brasília é palco para o novo romance de Margarida Patriota, “Cárcere Privado”, lançado este ano pela editora 7Letras. Uma trama psicológica que mistura elementos policialescos, suspense, muita ironia e crítica social através de uma personagem que decide tomar uma atitude extrema ao encarcerar em um cômodo de seu apartamento de quatro quartos, localizado na Asa Sul do Plano Piloto, uma “amiga” de muitos anos, com quem ela deseja vingança, após anos de ingerência abusiva em vida, segundo o seu relato. Interrompida toda hora por acontecimentos inesperados, perpetrados por seus vizinhos, a protagonista faz uma retrospectiva de sua vida em um clima ao mesmo tempo tenso e cômico.
Nesta história intrigante que também estabelece um retrato do modo de vida do alto funcionalismo público brasiliense, como também daqueles que se relacionam com eles, pertencentes a outras classes, “Cárcere Privado” é uma obra única por promover, através de uma figura feminina, narradora da história, uma reflexão sobre a condição humana em um contexto onde as aparências são de grande importância, ocultando os mais profundos conflitos pessoais internos.

Patriota possui extensa obra dedica ao público infantil e recentemente começa a escrever para leitores adultos. Foi também professora de Teoria da Literatura e Literatura Francesa na Universidade de Brasília de 1976 a 2003, além de assessora do Ministro da Cultura – Gabinete, Brasília de 1994 a 1996. É PhD em literatura francesa – teoria da narrativa, membro eleito da Academia Brasiliense de Letras e produz e apresenta o programa “Autores e Livros” da Rádio Senado, 91.7 FM, desde 1997. Nesta entrevista concedida especialmente a Revista Intertelas, ela conta mais detalhes sobre este seu mais recente trabalho. Acompanhe a seguir.

O enredo de “Cárcere privado” une elementos policialescos, psicológicos, cômicos, irônicos e de grande crítica social. O que a impulsionou a criar esta trama?
Minha intenção foi a de escrever uma narrativa que retratasse segmentos da vida cotidiana em Brasília e envolvesse, ao mesmo tempo, uma provocação de teor psicológico, sobretudo no que toca à condição feminina. Pensei numa narrativa conduzida por mulher de rotina externa trivial, que se mete numa situação limite, capaz de prender a atenção do leitor. A ideia do cárcere privado ocorreu-me tanto como foco de uma situação limite delituosa, quanto como metáfora da pessoa encarcerada nela mesma.
A protagonista tem um passado traumático e turbulento que influencia certamente sua vida adulta. Ela parece perdida, sem saber quem é, realmente, e que propósito teria a sua vida. Acha que esses seriam os males psicológicos maiores da personagem que desencadeariam outros problemas mais tarde?
O discurso da protagonista deixa claro, desde o início, que é o de uma narradora culta, que já ocupou um bom cargo no funcionalismo público e agora trabalha como tradutora freelancer. Ela é casada com um burocrata e o casal não tem filhos. Desde o início, vemos que a protagonista saiu do prumo e praticou um ato injustificável. Sem saber qual será o deslinde desse ato, vamos acompanhando as atribulações da responsável pelo malfeito, enquanto nos inteiramos de sua personalidade enigmática, mal resolvida.

A narradora sabe que é problemática. Ela anseia por um pertencimento que não consegue obter. Quis “se achar”, “se integrar”, e, ao falhar, criou um bode expiatório para seus dilemas. O passado traumático que lhe é atribuído serve de pista para explicar seu desequilíbrio. É um dado em que o leitor pode se ancorar para estabelecer uma relação de causa e efeito na história que se desenrola.
A protagonista demonstra ser uma pessoa solitária, com grandes dificuldades de relacionamento, apesar de manter certas conexões sociais. A vida dela parece um cárcere, do qual tenta, mas não consegue, escapar. Certamente o passado traumático tem influência sobre isso, mas talvez o ambiente em que ela vive, de classe alta em Brasília, contribua para que ela não consiga sair dessa situação.
Se morar num apartamento próprio, de quatro quartos, no chamado Plano Piloto de Brasília, é o vilão da história, a questão fica em aberto. Os problemas de quem mora assim são diferentes dos afligem quem tem de andar quilômetros, diariamente, para pegar água no açude. Os clientes dos psicanalistas pertencem, em geral, a quem tem condições de pagar por consultas particulares. Mas acredito que todo ser humano, para além do estrato social, seja aprisionado em suas limitações de saúde, pele, instrução, temperamento, sorte, azar e o mais.

Cada qual enxerga a vida através dos grilhões de sua subjetividade física-espiritual-psíquica-intelectiva. Claro que o social nos determina bastante. O personagem Vinhadalhos admite viver fechado na célula ministerial em que trabalha. Mas há uma dimensão que faz tanto o analfabeto quanto aquele que lê Proust ser mais ou menos sociável, mais ou menos solitário, mais ou menos altruísta, mais ou menos egocêntrico. Minha narradora é traumatizada, chora de barriga cheia, é psicopata, é esquizofrênica? É semidemente, porque é órfã, não tem filhos, o marido arranjou outra, e ela nunca foi empregada doméstica? O livro quis suscitar essas perguntas.

Mara Dália, a amordaçada, parece, às vezes, mais fruto da imaginação da protagonista que pessoa real. De qualquer forma, está vinculada à mente e ao coração da narradora. Seria um alter ego da protagonista?
Cárcere privado parte do dado pontual de uma violência cometida. Quem comete a violência e nos fala vai aos poucos gerando dúvidas no leitor quanto ao que realmente acontece. Afinal, quem é a vítima, que às vezes mal parece de carne e osso? Será que o cárcere em causa não existe apenas na cabeça da narradora? O texto foi construído de forma a provocar tais indagações. Todo relato em primeiro pessoa faz com que narrador e autor tendam a se confundir na cabeça do leitor. Ainda mais que, quem me conhece, sabe que eu moro num apartamento de quatro quartos no Plano Piloto, tive um Polo preto, fui professora de Literatura Francesa na Universidade de Brasília…
As mulheres de qualquer classe encontram obstáculos provenientes da sociedade patriarcal. O livro apresenta essa questão de forma bastante sutil. Inclusive destaca os preconceitos que estão também presentes no inconsciente e na forma de pensar de muitas mulheres, colocando-as, umas contra as outras. A protagonista tem dificuldades de enfrentar mulheres que têm ou exercem poder sobre ela. Como se só os homens pudessem deter esse poder. Como o problema da relação “hierárquica” entre mulheres contribuiu para o processo criativo da obra?
Qualquer ser humano, homem ou mulher, para manter outro ser humano em regime de cárcere privado é no mínimo portador de grave transtorno de personalidade. Se o encarceramento não pretende ganho monetário, restarão motivações de caráter existencial: vingança, paixão, obsessão, distúrbio relacionado à ingestão de drogas ou a alguma severa perda sofrida. A protagonista amarga uma orfandade agravada pelo convívio com uma avó deprimida e o sentimento de que está a perder o marido. Assim como os homens unidos se protegem (Jonas, o marido descomplicado, joga futebol com a turma) as mulheres que se unem ficam mais fortes. A mulher que se isola e se desentende com outras se fragiliza. Minha vilã, então, vai na contracorrente do empoderamento feminino.

Como foi o processo de retratar a classe alta de Brasília?
É preciso não esquecer que Brasília, em sua origens, incentivou com boas moradias a vinda de funcionários públicos de outros estados, sobretudo os funcionários federais sediados na antiga Capital. Quem ia querer sair da Cidade Maravilhosa, à beira-mar, para aguentar “apertamento” na planura de um cerrado ingrato? A maioria dos apartamentos funcionais da administração pública está concentrada no Plano Piloto de Brasília. Seus moradores, em boa parte, passaram em concursos, levam vida confortável e têm elevado grau de instrução. Esse é o segmento que eu retrato e conheço bem. Não retrato o empresariado rico, que mora em casas e mansões, sobretudo, no bairro do Lago Sul. Quanto à periferia, trago-a para o Plano Piloto, nas figuras da diarista e do porteiro.

A tia da protagonista, professora idealista, que se declara virgem, despertou na sobrinha a semente da preocupação social e do querer ajudar o próximo. Poderia discorrer sobre a importância dessa tia para a narradora e o simbolismo que ela traz para o enredo da história?
A tia representa uma fonte de afeto relevante que a protagonista recebeu na juventude. Ela é uma espécie de freira leiga, votada ao sacerdócio do magistério, nos primeiros graus escolares. Creio que o seu simbolismo na trama seja, por um lado, o de representar um caso de cerceamento privado que resultou benéfico para a comunidade; e, por outro lado, o de matizar o perfil da mulher economicamente independente, que a ficção atual quase só retrata como desenvolta no plano erótico.

O Brasil formado por imigrantes. A presença de um coreano na narrativa é algo bastante curioso. O livro insinua que, se o brasileiro recebe bem o estrangeiro, ele não necessariamente o acolhe em casa. Isso também resulta de que, cercados de alta tecnologia de comunicação e informação, vivemos hoje de forma mais isolada?
Brasilia, povoada por gente de todos os cantos do país teve sua fase de cearense com cearense, gaúcho com gaúcho, Embrapa com Embrapa, embaixadas com embaixadas, etc. Com a geração de brasilienses natos, isso mudou. Mas, no tocante ao estrangeiro, muito depende do quadrante do planeta de onde venha, mesmo se com a internet brasilienses de classe média vivam de forma mais isolada. Para a narradora, a oposição entre o estilo de vida oriental e ocidental, tem a ver com o estranhamento.

Diz: “Não acho morar entre embalagens de cartolina um modo corriqueiro de morar, escapa a padrões latinos, penso, dentro de minha estreiteza cultural, uma sala de visitas desprovida de cadeiras para visitas, sendo que os coreanos as usam para sentar, que eu saiba, não são como os japoneses que se acomodam em esteiras no chão”. Sobre o coreano, acrescenta: “Não combinamos em coisas pequenas que no fundo são grandes, na medida em que favorecem ou desfavorecem a empatia humana.”
As pessoas que pertencem a uma classe social menos favorecida ou se encontram em grandes dificuldades são aquelas pelas quais a narradora parece ter mais empatia e proximidade. Qual a sua reflexão sobre esse ponto?
Um traço da complexa relação entre classes mais e menos favorecidas no Brasil está no fato de que, na esfera da vida privada, patrões e empregados acabam tendo um convívio mais próximo, regular, duradouro e afetivo (ao partilhar confidências, lembranças, aniversários e uma gama significativa de vivências caseiras), do que com vizinhos de prédio ou de rua, que levam mesmo padrão de vida.

Como você descreveria sua carreira de escritora, até recentemente? Quais foram as maiores dificuldades e as grandes realizações, no mercado literário de um país que lê pouco?
Cometi poemas de juventude, como todo mundo, ganhei um prêmio de ensaios em escala nacional, ainda adolescente, obtive os diplomas de Mestrado e Doutorado em Literatura, antes de me arriscar a escrever ficção. Tive um relativo sucesso escrevendo para o público juvenil, com livros publicados pelas editoras Saraiva e FTD, bem como ganhando o prêmio João de Barro nessa categoria. Ganhei um concurso de romance promovido pelo Instituto Nacional do Livro, no ano em que esse instituto foi extinto e não honrou a publicação do original, como previa o regulamento.
O livro acabou saindo pela editora Atual, e para o público juvenil. Meus livros: “Enquanto aurora” (7Letras) e: “Uma voz do outro mundo” (Dimensão) foram comprados pelo Programa Nacional de Bibliotecas Escolares, do Ministério da Educação. Logo que meu primeiro livro de poesia, “Laminário“, saiu, convidaram-me a publicar poemas na Revista da Academia Brasileira de Letras. “Cárcere privado” é meu quarto romance para o público adulto e estou lançando, este ano, “Tempo de delação”, meu segundo livro de poemas. Mudar de público alvo foi a maior dificuldade que encontrei junto às editoras, e considero ganhar prêmios literários, concorrendo sob anonimato, uma grande realização.

Tem havido cortes em programas de incentivo a novos escritores. Como avalia a situação atual do mercado literário brasileiro e o futuro deste?
O mercado de livros físicos está em retração no mundo. Não é diferente no Brasil. Meus livros, por exemplo, estão sendo vendidos nos sites das editoras, em estantes virtuais e na Amazon. O advento da internet, por outro lado, facilita divulgar livros de maneira independente e ter um bom público seguidor. Sei que o livro não acabará, mas qual o seu lugar nas gerações futuras, não sei bem.
Assista Patriota falando sobre literatura e de trabalhos anteriores nos vídeos a seguir.
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