
No dia 7 de março de 2020, às 19h, a sala de espetáculos do Centro Cultural dos Correios, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, recebeu um encontro musical que despertou a atenção de vários amantes da música japonesa e brasileira. Grande parte deste interesse está, em especial, no caráter de interação que a iniciativa proporcionou a uma plateia que, comparecendo em peso, interagiu em vários momentos com os músicos, aplaudindo de pé ao final.
O projeto Conexão Brasil-Japão surgiu em 2010, com o objetivo de estabelecer uma integração cultural entre os dois países. Em dez edições, músicos brasileiros como Roberto Menescal e Danilo Caymmi dialogaram com músicos japoneses, a exemplo de Michinari Usuda. Neste ano, o público pode desfrutar do repertório musical de Gabi Buarque, Shen Ribeiro e Tatsuro Murakami.

Segundo o produtor e diretor do espetáculo David Leal, a edição deste ano foi uma ampliação de uma outra inciativa realizada em São Paulo há quatro anos atrás. “Foi o Conexão Bossa Nova, mas em 2020, com o auxílio do Consulado Geral do Japão no Rio de Janeiro, do Centro Cultural dos Correios e do Instituto Cultural Brasil-Japão, conseguimos expandir nossa proposta e oferecer algo inusitado. Além de Bossa Nova, apresentamos Música Tradicional Japonesa, Choro, trabalhos autorais, tudo em um único show, visando mostrar ao público local a ponte musical que existe entre os dois países. Apenas para ter uma ideia, o repertório da noite abriu com uma música de um mosteiro budista”, explicou o organizador do evento.

Certamente, a integração foi a linha que definiu este encontro musical. Os três músicos, além de estudiosos e verdadeiros amantes de suas profissões, possuem uma conexão especial na estrada que integra brasileiros e japoneses. Shen Ribeiro, em 1982, ingressou no coral da Universidade de São Paulo e iniciou o curso de flauta transversa. Em 1987, partiu para o Japão com o intuito de especializar-se no estudo do Shakuhachi (tradicional flauta de bambu japonesa). Em 2017, assumiu a vice-presidência do pavilhão japonês no parque do Ibirapuera, São Paulo. Recentemente lançou seu último CD no Japão com músicas tradicionais deste país.
“Desde o começo eu almejava explorar esta conexão entre Brasil e Japão através da música. Um dia conheci a flauta tradicional japonesa Shakuhachi. Com este instrumento entrei em contato com um passado milenar do Japão que até então desconhecia. Trata-se de uma história cultural e obviamente também humana. Eu vejo o Shakuhachi como um avô das flautas. Comecei a minha carreira tocando flauta transversal que tem um som mais suave, delicado. Para tentarmos criar uma imagem podemos dizer que ela possui um som mais ‘fino’ , ‘sem muito corpo’. Já o Shakuhachi tem uma profundidade maior. Ele é feito de bambu, o que resulta em um som mais primitivo. Possui apenas cinco furos, o que lhe dá uma enorme plasticidade, uma sonoridade muita rica de harmônicos, algo mais sujo, cheio de ar e vento, dando uma ideia de proximidade com a natureza“, explica Ribeiro em entrevista exclusiva para a Intertelas.

Ele ainda salientou como a música japonesa tradicional, diferente da brasileira, busca inspiração na natureza. “Isso tem correlações com outros traços da cultura como o Xintoísmo, que é original do Japão. No entanto, apesar de milenar, o Shakuhachi passou de geração em geração, sendo adaptado para os contextos culturais de cada época. Assim, temos momentos históricos diversos do instrumento começando com os monges budistas, depois passando pelo Japão feudal, pela Era Meiji, pelo Japão moderno, pelo Japão contemporãneo e ultrapassando as fronteiras, chegando à Europa e aos Estados Unidos. Este último o introduziu em composições de Hollywood. Hoje ele está no Brasil. Eu venho realizando um trabalho de apresentar o Shakuhachi aos brasileiros. Durante o encerramento das Olimpíadas do Rio em 2016, quando ex-prefeito Eduardo Paes entregou a bandeira olímpica para a então prefeita de Tokyo Yuriko Koike, eu toquei a música “Canto de Xangô” do Baden Powell no Shakuhachi. Foi uma oportunidade sem igual, pois milhões de pessoas puderam assistir e conhecer o instrumento”.
Segundo Ribeiro, a interação entre japoneses e brasileiros, povos de culturas tão diferentes, é um mistério difícil de ser analisado sociologicamente. Contudo, a música possibilita este encontro em momentos que dois países de culturas tão apostas acabam mutuamente atraindo-se, com brasileiros querendo conhecer de forma profunda a música japonesa e japoneses vindo estudar os ritmos do Brasil.

Gabi Buarque parece também compartilhar da mesma ideia: “acho que a música de forma geral é um lugar de encontro. Tanto na japonesa, que tem uma linguagem muito própria, quanto na brasileira, que é tão rica em termos rítmicos, é possível encontrar brechas e esquinas. A cultura japonesa, em geral, ensina muito para nós sobre a importância do silêncio. Claro, que é uma contradição em si, porque, afinal, estamos falando de música, mas ainda assim as pausas para os japoneses são tão importantes quanto às notas musicais. O Japão me toca com suas pausas, notas precisas e longas. Nada exagerado, seguindo uma filosofia de que menos é mais“.

Buarque estudou na Escola de Música Villa-Lobos e na Escola Portátil de Música. Tem dois CDs lançados: “Deixo-me Acontecer” (2011) e “Fiandeira”(2014). Fez turnês por Portugal, Espanha, França e Japão. Foi premiada como melhor intérprete no Festival de Rádios Públicas do Brasil por dois anos consecutivos. Participou do programa “Senhor Brasil, produzido pela TV Cultura. Sobre a sua turnê pelo Japão, ela salienta: “eu tive de aprender uma música em japonês, pois fazia parte do repertório dos shows. Eu não sei falar o idioma, mas é incrível como conseguimos decorar e realizar muita coisa através dos fonemas. Ao mesmo tempo, esta noção de que com algo tão simples e ao mesmo tempo tão genial, como a flauta Shakuhachi, você, usando apenas da sua critividade a sensibilidade, é capaz de gerar coisas inacreditáveis“.

Tatsuro Murakami realizou o caminho inverso. Nascido em Tóquio, ele veio para o Brasil, no intuito de estudar o Choro e outras vertentes da Música Popular Brasileira. Estuda no Conservatório Musical de Tatuí São Paulo. Atualmente está especializando-se no violão de sete cordas. Após seis anos no Brasil, fala um ótimo português e já compôs duas músicas. Uma delas dedicou a sua noiva brasileira, nascida no sertão do país. Ele também contou ao Intertelas um pouco da sua trajetória.

“Meu pai gosta de música brasileira. Então, desde criança eu escutava Bossa Nova, MPB e tantas outras vertentes musicais do Brasil. Cheguei aqui através de um intercâmbio escolar e comecei a gostar de outros aspectos do país. Percebi que a música brasileira é vinculada muito ao contexto cultural brasileiro. Assim, eu quis aprender de forma mais profunda e retornei ao Brasil em 2014 para estudar o Choro. Fiquei apaixonado pela linguagem e pelo violão de sete cordas. Hoje estou quase formado no curso de Tatuí. Eu também gosto de Rock Nacional, “Mutantes”, “Secos e Molhados”, gosto de Samba, MPB, “Chico Buarque”, “Djavan” e, claro, da Bossa Nova. Mas um dia me deparei pela primeira vez com o Choro e senti algo mais “raíz”. Depois fui descobrir que ele tem uma base da música popular brasileira bastante forte. Eu diria que iniciei a entender e conhecer o país realmente através desta vertente musical“, explicou.

Como os dois parceiros de palco, Murakami acredita que os sentimentos são a fonte de criação da música, o que a torna uma forma de arte e cultura bastante universal. Grande parte destas colocações também foram mencionadas por integrantes da plateia, que após o show procuravam os músicos para uma rápida conversa e tiravam fotos.
Leandro Lima, fotográfo e que possui grande interesse na cultura japonesa, fez questão de salientar a importãncia do evento: “o espetáculo foi incrível e mostrou a essência da cultura japonesa e brasileira. Na minha opinião muitos eventos pecam em querer mostrar apenas uma parte mais comercial da cultura. Aqui foi possível ver com mais profundidade o contato entre o Japão e o Brasil. A integração entre os músicos ficou bastante clara. Eu me apaixonei, pois a amizade que existe entre os dois povos é real e neste momento ficou bastante perceptível“.

O show contou com a presença da cônsul cultural Rina Ishikawa e também do grão mestre de Taekwondo Kim Yong Min que comentou sobre a apresentação: “todos os organizadores estão de parabéns. É muito bonito ver uma iniciativa como esta, unindo os povos e as culturas. Foi bastante emocionante“. A pesquisadora do carnaval brasileiro da Busan University of Foreign Studies Kyu Won Park também salientou a interação dos músicos como o ponto de destaque: “foi uma ponte musical e linguística, pois cantaram em português e japonês. Foi muito interessante e divertido. Eu tive grande interesse neste show como pesquisadora da cultura brasileira e também sou asiática, portanto consegui estabelecer diversas conexões aqui“.
Victor Carlos Siqueira, estudante de engenharia e produtor fonográfico, recentemente iniciou seus estudos do Shakuhachi. “Eu sempre gostei da música japonesa, tenho interesse em explorar e conhecer a música de outras regiões e países. É muito interessante quando você ouve o timbre de um instrumento japonês colocado em um arranjo da música brasileira. Ele não é originário deste contexto, mas ao mesmo tempo consegue encaixar-se muito bem. Eu acompanho a cultura japonesa desde pequeno e hoje quero aprofundar meus estudos. Este show foi uma oportunidade única“.

Sobre a importância de um evento como este, David Leal frisou: “no momento histórico que estamos vivendo de muito conflito e uma inclinação ao afastamento das nações, é imprescindível promover iniciativas que aproximem os povos, que façam que eles sejam mais solidários uns com os outros. Aqui estamos realizando uma integração musical. Dois povos teoricamente diferentes, mas que estão juntos através da cultura, da música. Este é o nosso objetivo principal: a articulação e unidade entre as culturas, afinal é importante lembrar que somos todos irmãos“.
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