
Alguns diretores (muitos, na verdade) perseguem um tema durante toda a sua carreira, o que acaba refletindo na coerência temática de sua obra, ou na maioria dela. Isso pode, obviamente, mudar conforme amadurece o realizador, e outros temas acabam somando-se àqueles já existentes. Por exemplo, Steven Spielberg possui um tema clássico, que permeia toda sua carreira, que é a necessidade do norte-americano médio voltar para sua “casa” psíquica, simbólica, nacional ou mesmo moral. Mas, recentemente, começou a incorporar outros temas, adicionados aos existentes e perseguidos pelo autor: a tentação dos Estados Unidos (e dos estadunidenses) para o autoritarismo, quando ameaçados por uma força externa (ou interna), o que acaba por conectar-se com outro tema antigo e caro ao autor: explorar o medo que seus conterrâneos têm do estrangeiro, do diferente, do “outro”.
Ron Howard também persegue seus temas e os coloca em seus filmes. Para o diretor, a disputa ou rivalidade entre personagens fortes, ambiciosos e obstinados, e os impactos que essa disputa traz para suas vidas e para as pessoas que os rodeiam, move os seus filmes. A tensão resultante dessa disputa costuma oferecer boas oportunidades para discutir aspectos profundamente humanos dos personagens, como as paixões movidas pelo ego, a sanha de poder e de glória, a preocupação com o legado de suas vidas, a necessidade de romper estigmas culturais e de classe, dentre outros.

Sobretudo, as vozes atormentadas por essas disputas são profundamente masculinas. De fato, Howard mergulha na psique masculina de seus personagens, através de códigos culturais estereotipados e simbólicos. Por isso, convêm-lhe cenários onde o “pathos” masculino aparece de forma mais excessiva e visceral, como o espaço “Apolo 11″ (1995), as corridas de automóveis “Rush” (2013) ou mesmo o mar e suas criaturas, como “No Coração do Mar” (2015), filme inspirado no livro homônimo escrito por Nathaniel Philbrick sobre o navio baleeiro Essex, levado a pique, no início do século XIX, por um grande Cachalote Branco. A obra, por usa vez tem influência do trabalho de Herman Melville, criador de um dos maiores e mais eruditos (além de uma extraordinária aventura) livros sobre navegação e o mar, “Moby Dick” (1851).
E, em função dessa reflexão, entendemos algumas das limitações da sua obra. Seus personagens femininos são normalmente fracos, quase pictóricos. As mulheres existem, basicamente, para compor o universo de determinado personagem. Nunca (ou raramente) protagonizam uma intenção ou propósito que seja marcante para a história.
E, assim como Peter Weir em “Master and Commander” (2003), Howard usa o universo “bravio” da navegação para compor seu típico cenário aventuresco, romântico e profundamente masculino. Dois homens de origens sociais e objetivos contrários, o imediato Chase (Chris Hemrsworth ) e o capitão Goerge Pollard (Bejamin Walker), filho de uma das famílias mais tradicionais da indústria baleeira, disputam a liderança dos marujos na missão de caçar baleias e extrair delas o Espermacete, um óleo encontrado em suas cabeças e usado na iluminação pública (num momento que as cidades europeias e estadunidenses começavam a crescer rapidamente, motivadas pela revolução industrial e o crescimento populacional). A indústria baleeira morreria com o advento da indústria do petróleo, substituindo o Espermacete e expandindo suas aplicações para vários setores da economia industrial.
A tensão entre esses personagens oferece ao diretor a oportunidade de abordar temas como a distinção entre as classes sociais no século XIX (não muito diferente da nossa realidade), a ganância destruidora do homem e sua atitude violenta perante a natureza para obter o que precisa, além do ambiente embrutecedor e perigoso da indústria baleeira. A vingança da natureza, que se abate contra a tripulação do Essex, é materializada na forma de um gigantesco Cachalote branco, que ataca e afunda o navio, submetendo seus sobreviventes a todas as agruras do pacifico sul.

O filme não é original na sua decupagem (estrutura que conta com o batido recurso do Flash-Back para desenvolver a narrativa), mas Howard consegue garantir agilidade e energia à história através de uma série de planos-detalhes que conferem um verdadeiro mergulho no universo que ele quer tanto contar. E isso garante a manutenção da tensão necessária, em especial nos momentos críticos do filme (àqueles que mostram o duelo entre a baleia e os homens). A trilha de Roque Baños é somente “ok”, servindo para sustentar a narrativa, em especial nos momentos de tensão, emulando nos seus acordes graves a música de Hanz Zimmer.
O diretor de fotografia Anthony Dod Mantle (o mesmo de “Rush”, filme anterior de Howard) usa uma paleta de cores desbotada e levemente esverdeada, o que favorece, sobretudo, as sequências sob a superfície, nos planos onde a baleia é mostrada. O resultado é bastante eficiente e ressalta a ambientação daquele universo rústico e datado. O Filme peca por tentar abordar muitos assuntos, o que causa no espectador a sensação de indefinição do seu roteiro. Isso é particularmente verdadeiro quando o grande Cachalote entra em cena. As cenas são rápidas, mas bem construídas, provando o talento narrativo de Howard. No entanto, o filme considera a baleia como “mais um” desafio que a natureza joga sobre os homens desesperados. Isso pode provocar, em algumas pessoas, certa decepção, uma vez que estas procuravam encontrar um filme mais convencional, que optasse pelo eterno duelo “homem x besta”.
Um filme irregular e que acabou “naufragando” nas bilheterias, até pela distância com o público feminino (velho problema de Howard), e pela expectativa do espectador médio por um filme de aventura com um grande e misterioso monstro marinho. Uma percepção bastante diferente dos objetivos do diretor, mais interessado em narrar os tortuosos e violentos caminhos de uma humanidade cega e inconsequente na forma de relacionar-se com a natureza, expandindo seus desejos e demandas sem maiores preocupações e questionamentos. E, nesse aspecto, o diretor realiza um filme ambicioso, ainda que irregular, com forte mensagem ambientalista e crítica ao capitalismo predador, que justifica qualquer violência e excesso pelo “progresso” do homem.
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2015/12/16/no-coracao-do-mar-in-the-heart-of-the-sea-2015-diretor-ron-howard/
Direção: Ron Howard
Elenco: Chris Hemsworth, Cillian Murphy, Brendan Gleeson
Duração: 2h02min
Lançamento: 3 de dezembro 2015 (Brasil)
Idioma: inglês
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