“Margin Call – o dia antes do fim”: a melancolia existencial na era do capitalismo financeiro

Margin Call – O Dia antes do fim (2011), dirigido por J.C. Chandor. Crédito: divulgação.

O mundo desenvolvido, em especial o Anglo-saxão, passou por um terremoto moral em 2008, que precede, sobretudo, à crise financeira que se seguiu. Na verdade, a brutal crise de liquidez que engoliu bancos centenários e debilitou (ferindo de morte outras tantas) grandes empresas globais foi o resultado, o produto da escandalosa indústria de derivativos e outros criativos produtos financeiros de Wall Street.

Desde os anos Reagan, o sistema financeiro americano desregulamentava-se de forma criminosa e irresponsável (e sobre isso, recomendo um grande documentário sobre o tema, “Inside Job” de Charles Ferguson – produzido em 2010 e ganhador do Oscar de melhor documentário daquele ano), dando aos bancos, e basicamente só a eles, a capacidade de emissão de empréstimos e hipotecas de forma transloucada, gerindo esses contratos suspeitos e pouco sustentáveis, securitizando-os, vendendo-os como investimento ou simplesmente repassando o montante de dívidas para outras instituições, num processo que acabaria contaminando toda a economia global. Ou quase toda ela…

Portanto, diferente do que a ideologia neoliberal quis que o mundo entendesse, de que essa crise teria surgido pelos processos naturais (naturais???) de crescimento e arrefecimentos dos ciclos econômicos, a crise de 2008 é o resultado de décadas de culto à ganancia desmedida e à tentativa de resolução da história por meio de subprodutos acadêmicos. Foi a extrapolação máxima de um modelo de vida único, cronicamente individualista, desumano na sua gênese (de um darwinismo social torpe) e de completo desapego com a economia e o mundo reais.

Crédito: https://www.heyuguys.com/

Uma das grandes virtudes de Margin Call – O Dia antes do fim (2011) é que essas tensões, dilemas e culpas, que assombram os personagens, estão todas elas representadas no drama, no peso de suas consciências, no medo da destruição financeira e, fundamentalmente, da desolação de suas próprias carreiras e economias. Sim… o filme é sobre os medos egoístas e mesquinhos. Não existe ali preocupação com o universo fora daquelas paredes. Todos os personagens sofrem, lutam, angustiam-se pelos efeitos daquela avalanche de desordem financeira sobre suas cabeças e carreiras. Não existe espaço para pensar no próximo (com uma ou outra exceção). Afinal de contas, esse filme é, também, sobre o capitalismo…

A expressão “Margin Call” (ou Pedido de Margem, na sua tradução literal), que dá nome ao filme, é usada pelo mercado financeiro para retratar o Patrimônio Exigido que um Investidor deve possuir para garantir uma posição no mercado. Ou seja, quando um banco ou qualquer outro agente financeiro concede um empréstimo ou faz operações de compra e venda de papéis sem um respectivo lastro de ativos que possam garantir essas operações.

O filme inicia-se dentro de um escritório de uma organização qualquer (fictícia, mas poderia ser qualquer uma da City ou de Wall Street), onde demissões serão feitas, seguindo toda a liturgia boçal e violenta, camuflada de civilidade asséptica, que as empresas utilizam para situações como essa. Quando o executivo Eric Dale (Stanley Tucci, sempre seguro) é sumariamente demitido, de forma truculenta, com uma “escolta” acompanhando-o até a saída do prédio, ele pergunta para a executiva sobre um estudo que ele estaria conduzindo e que seria de suma importância para o banco.

Como ele é ignorado, salva o relatório num pendrive e entrega para o seu analista “dar uma olhada”, alertando-o para o que este encontraria: “tome cuidado, isso pode ser perigoso”. Peter Sullivan, o analista (interpretado pelo sempre carismático Zachary Quinto) atravessa a noite estudando o relatório potencialmente perigoso, quando finalmente encontra…o fim.

Esse é o início do filme. Durante o seu desenvolvimento, que se dá durante a madrugada após o desencontro de saldos descoberto por Sullivan, a hierarquia do banco é toda envolvida (e com ela, atores de peso como Paul Bettany, Kevin Spacey e Jeremy Irons, respectivamente o gerente, diretor e, por fim, presidente do banco). Acompanhamos o desenrolar da crise posta e qual maneira aquelas pessoas encontram para “livrar” a cara da empresa e, acima de tudo, suas próprias cabeças. O que admirei, e muito, foi a sensibilidade do diretor J.C. Chandor para retratar o ambiente corporativo com raras vezes viu-se no cinema. Não poupou suas idiossincrasias, seus códigos e, acima de tudo, seus valores.

Com fina (e cortante ironia), retrata o grau máximo de alienação dos executivos, seus discursos vazios e, acima de tudo, das relações de poder de uma grande organização. Numa determinada cena, o diretor (Spacey) demonstra dificuldade em ler um gráfico básico do relatório, no que é ajudado pelo seu gerente carreirista (Bettany), para espanto reservado do analista que, mesmo falando pouco durante o filme, carrega, de certa maneira, o olhar do espectador naquele universo. E Zachary Quinto contracena na cena mais reveladora do filme. Num determinado momento, o presidente da empresa, lá pelas tantas na madrugada, pede para que o personagem de Quinto explique, em “simples Inglês”, o que estava em curso e seus riscos potenciais para a empresa.

Ao terminar o diagnóstico catastrófico para a instituição, baseado em suas projeções, ele é interpelado pela executiva Sarah (Demi Moore, contida, mas o personagem menos desenvolvido da trama), sênior e responsável pelo mapeamento dos riscos do banco, qual o seu background acadêmico. O personagem de Quinto então discorre pela graduação em engenharia e mestrado em propulsores de foguetes e dinâmica; é interpelado por alguém que diz “você projeta foguetes…”, e Sullivan, então, vaticina a lógica por trás de toda a estrutura capitalista. Apesar do ofício, da formação e quiçá, da predileção por engenharia aeronáutica, o conhecimento em matemática do personagem é mais do que suficiente para operar as equações exigidas pelo mercado financeiro.

Na verdade, o salário aqui é bem maior”, testemunho franco e que emoldura a crise que o ocidente atravessa, onde a produção foi claramente ignorada e ou entendida como uma etapa vencida no capitalismo, sendo ela deixada para alguém menos criativo… Sendo ele recheado de pequenas ironias mas sem abrir mão do tom sério e sufocante do filme ,vamos nos exaurindo conforme a madrugada avança, e com ela, os dilemas morais de alguns personagens. Privatizar os lucros e socializar os prejuízos é a tônica e a decisão da empresa, que escolhe sobreviver, mesmo sob descrédito e da danação de outras tantas. Chama bastante atenção a solidão daquela gente.

Mesmo poderosos, são escravos de códigos e condutas que se mostram bastante sufocantes. Na impossibilidade de construir relações humanas sadias, um personagem apega-se ao cão. Quando este morre, ele desaba num pranto sentido, talvez o mais sentido do filme. E, mesmo trabalhando no limite da responsabilidade, condenando milhares de famílias à miséria, talvez reste o cão para entendê-lo (ou não condená-lo) pelas escolhas morais que sua profissão impõe-lhe.

A cidade de Nova York serve como quadro, pano de fundo da trama, que se dá numa dessas torres de escritório envidraçadas e arrogantes. É interessante essa rima visual e temática escolhida pelo diretor: enquanto a cidade dorme, aquelas pessoas (encasteladas na torre) tramam possíveis saídas que, no ápice do seu impacto, acabariam por contaminar toda a economia, com os dramas e violências oriundas dessa decisão. As cores geladas e frias do escritório, sufocantes de certa maneira, ganham um inteligente contraponto quando o filme, através dos personagens que a câmera persegue, “escapam” desse ambiente.

Então, as cores tornam-se mais vibrantes, como se a vida fora daquele escritório fosse real, concreta, vívida. Uma cena memorável do filme dá-se nesse contexto, quando o gerente (Bettany) corre para encontra o outro executivo (Dale / Tucci) que fora demitido no início do filme, tentando convencê-lo a voltar para o escritório enquanto a crise não é debelada. A conversa que se dá entre os dois é sintomática. Dale explica, num frenesi numérico, que no começo da sua carreira ele havia sido responsável pela construção de uma ponte, e que ele economizou milhões de dias de tráfego para as pessoas que passaram a utilizar da estrutura. Ele, antes de ser atraído por melhores salários, por bônus e até a presença simbólica dessas instituições, exercia sua função de engenheiro…e via coerência nisso. Sua vida tinha sentido.

Ao menos, ele produzia algo. O personagem chega a essa conclusão e é impossível não sentirmos sua melancolia existencial, quando percebe que dedicou sua vida a um negócio que nunca lhe ofereceu a possibilidade de fazer nada minimante sólido e coerente. Na reflexão da sua vida, o ex-engenheiro constata a alienação crônica e sem sentido de sua vida… Um filme bem dirigido, com estilo e elegância, esplendidamente interpretado por um time de grandes atores, que procura não produzir, ao menos de forma direta, juízo de valor daquilo que apresenta, respeitando e acreditando na inteligência do seu público (que sensível, não terá como não fazê-lo ao final da projeção), e que conta um retrato social perfeito do mecanismo do atual capitalismo, cada vez menos desprovido de concretude, conduzido por cabeças de planilha alienados e loucamente ambiciosos.

Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2015/11/18/margin-call-o-dia-antes-do-fim-margim-call-2012-diretor-j-c-chandor/

Título: Margin Call – O Dia Antes do Fim
País: EUA
Direção:  J.C. Chandor
Roteiro:  J.C. Chandor
Elenco: Kevin Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons, Zachary Quinto, Penn Badgley, Simon Baker, Demi Moore, Stanley Tucci
Duração: 1h47
Lançamento: 9 de dezembro de 2011
Idioma: inglês
Legenda: português

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por Anders Noren

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