Ásia em Pauta com Daniela Mazur – “A Netflix e a indústria audiovisual sul-coreana: parceria, ou novo imperialismo”?

Crédito: Raphaela Marrise.

Promover uma reflexão sobre a presença da Netflix e seus impactos econômicos e políticos no mercado sul-coreano foi o objetivo da segunda edição do programa Ásia em Pauta. A Netflix é uma empresa dos Estados Unidos, fundada em 1997, com sede no estado da Califórnia. Ela se tornou um dos principais nomes no mercado global provedor de conteúdo audiovisual: cinema e séries via streaming. Um de seus diferenciais foi abrir espaço para o conteúdo audiovisual de outras partes do mundo, que antes ficavam limitados ao público de suas regiões.

Esta foi uma estratégia que promoveu uma mudança radical no sistema mercadológico mundial deste setor e fez com que a Netflix acabasse por também atuar como uma forte produtora de conteúdo. Este alcance internacional, talvez tenha sido uma das razões que possibilitaram a empresa, após diversas tentativas frustradas, entrar no mercado sul-coreano e concorrer com poderosas plataformas locais. Hoje, os filmes e séries sul-coreanas estão bastante presentes no catálogo da empresa e diversas coproduções estão sendo realizadas entre a plataforma e os grandes estúdios sul-coreanos. Contudo, nem tudo é o paraíso. Diversas contradições e até políticas da própria Netflix parecem colocar em xeque os direitos dos autores sul-coreanos e outros profissionais do ramo.

Daniela Mazur, doutoranda em comunicação pela UFF e especialista em estudos sobre a Hallyu, plataformas digitais e televisão. Crédito: arquivo pessoal.

Para responder a perguntas sobre o tema, o programa convidou a doutoranda em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea (MidiÁsia-UFF), especialista em Onda Cultural Sul-Coreana, a Hallyu, Daniela Mazur. Ela, que junto a outros colegas, vem desenvolvendo também, ao longo de sua carreira acadêmica, estudos centrados no tema da televisão e das plataformas digitais. O programa “Ásia em Pauta” é uma iniciativa conjunta do Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Federal Fluminense (CEA-UFF) e da Revista Intertelas. Nesta oportunidade, também foram realizadas reflexões sobre o impacto da Onda Sul-Coreana no Brasil e na Ásia, além de seus desdobramentos tanto econômicos, quanto políticos nestes espaços geográficos

Acompanhe os artigos de Daniela Mazur nos sites Academia e ResearchGate

É preciso lembrar que em razão de problemas técnicos, o programa Ásia em Pauta desta ocasião não pode ser exibido em seu formato de vídeo como anteriormente planejado. Mas, por se tratar de um tema de suma importância, a entrevista está sendo agora publicada por escrito. Os próximos programas do Ásia em Pauta seguirão em seu formato audiovisual normal. Sem mais, os entrevistadores Alessandra Scangarelli Brites (jornalista, especialista em política internacional e estudos de mídia, editora da Intertelas) e Mateus Nascimento (historiador, pesquisador e fundador do CEA -UFF) desejam boa leitura.

Crédito: Film Daily.

Alessandra Scangarelli Brites: Qual o impacto específico da Netflix na indústria sul-coreana de cinema e séries?

Daniela Mazur: Trata-se de um fenômeno extremamente recente. Então, o que eu vou trazer pra vocês são alguns apontamentos que eu tenho percebido em minha pesquisa realizada junto aos colegas Daniel Rios e Melina Meimaridis, sobre a chegada das plataformas Netflix, Amazon, Disney Plus, HBO Max e outras na Coreia do Sul. A situação que ali apresenta-se reverbera em um contexto que pode ser visto também no Brasil e em outros países da América Latina, como o México, que também foram o foco deste artigo que escrevemos para a Revista Geminis.

Primeiramente, é possível notar que a Netflix adaptou seu discurso para esses mercados locais, o que foi parte de sua estratégia global para enraizar-se como uma das plataformas mais importantes de streaming. A Netflix começou a sua atividade na Coreia do Sul no início de 2016 e, logo, não teve uma boa aceitação no país. Demorou a ter uma boa base de assinantes, mas isso foi mudando lentamente no final de 2017. Assim, uma das razões para esta demora, foi uma estruturação muito forte da televisão nacional. Lembrem também que um dos braços fortes da onda cultural sul-coreana é a exportação dos produtos televisivos. Deste contexto, destacam-se a atuação das grandes corporações de telecomunicações locais. Outro elemento que provou trazer dificuldades à Netflix em entrar no mercado sul-coreano foi um catálogo muito pobre em obras não ocidentais, que contenham narrativas locais. Especificamente, os dramas e filmes sul-coreanos eram muito poucos.

Confira o artigo “A Empreitada Global da Netflix: uma análise das estratégias da empresa em mercados periféricos“, de Daniela Mazur, Daniel Rios e Melina Meimaridis. Clique no link para ter acesso ao artigo. Crédito: Geminis.

Assim, a Netflix precisou mudar suas estratégias e começar a comprar produtos locais e também produzir conteúdo para atingir o público sul-coreano que consome muito a sua própria produção audiovisual e tem uma infraestrutura para tanto. E em razão da onda sul-coreana no mundo, este mercado tornou-se importante e necessário para a Netflix, o que também impulsionou a Coreia do Sul como uma grande exportadora e uma grande expoente em cultura pop. Porém, ela também se tornou um centro de mediação para chegar a outros públicos em potencial, especialmente em países vizinhos da Coreia. A estratégia da empresa estadunidense não foi apenas conquista da audiência sul-coreana, mas também ter esse conteúdo e produzi-lo, servindo como uma porta de entrada para outros mercados no leste da Ásia.

Isso ocorre também pelo fato da Netflix não ter conseguido entrar na China. O mercado chinês seria o grande mediador. Assim, a Coreia, com a sua onda cultural, surgiu como segunda opção. A primeira iniciativa da empresa estadunidense foi o filme Okja. Uma vez que ele entrou na plataforma, houve um crescimento bastante relevante no número de inscritos. Foi de 70 para 200 mil assinantes, lembrando que o crescimento foi gradual. Em 2018 e 2019, com a entrada também do catálogo de produções nacionais, não só compradas, mas também originais Netflix, a plataforma foi crescendo, ao ponto de hoje, em 2021, ser a de maior acesso, com maior quantidade de assinantes na Coreia do Sul. E isso trouxe muitos problemas, principalmente para as plataformas e empresas produtoras de conteúdo locais.

Mateus Nascimento: levando em conta a sua análise, apesar das questões de mercado interno, pode-se dizer que a Coreia também observou a Netflix como uma oportunidade para conquistar um público para além da Ásia?

Daniela Mazur: Quando se pensa na Onda Cultural Sul-Coreana (a Hallyu), é preciso lembrar que se trata de um fenômeno de exportação também. Então, todas as plataformas, mediações, espaços, empresas, que de alguma forma possam potencializar ainda mais o alcance da Hallyu, são importantes e interessantes para a indústria sul-coreana. Mas a questão mais saliente é o fato de que a Netflix não só é uma plataforma que facilita e expande esse potencial de exportação para o resto do mundo, como também é um agente que está infiltrado no mercado local.

A Netflix está presente em mais de 190 países. Então, sem dúvida, é uma plataforma muito importante que tem mais de duzentos milhões de assinantes pelo mundo.  Contudo, ao entrar para a indústria local, ela muda os jogos de poder. São pesos que não são equilibrados, porque estamos falando de duas potências aqui. Uma é o fenômeno cultural, a Hallyu, a outra é a força de uma corporação transnacional que está em mais 190 países, que tem todo o corporativismo estadunidense por trás. Isso trouxe embates que foram explicitados especialmente pela imprensa sul-coreana. Em nossas pesquisas de palavras usadas pelos jornalistas, foi possível notar que elas eram bastante combativas, como se estivessem em um clima de guerra. Atualmente já se fala muito sobre a guerra dos streamings. A imprensa sul-coreana teve uma percepção que este embate, de alguma forma, iria prejudicar a indústria local.

Dica de leitura da Dani Mazur: “The Meaning of Newness in Korean Cinema: Korean New Wave and After”, de Moon Jae-cheol

Alessandra Scangarelli Brites: aproveitando esta linha, nossa próxima pergunta aborda objetivamente esta relação entre a plataforma do EUA e os estúdios sul-coreanos. Podemos chamar de uma parceria, ou seria, na realidade, uma nova forma de imperialismo? Ou até, seriam ambos?

Daniela Mazur: então, são os dois. A Netflix é importante para a Hallyu. Tanto que ela foi apontada como uma das maiores plataformas de expansão da Onda Cultural Sul-Coreana pelo mundo, especialmente nesse momento em que oficialmente, segundo a Korean Foundation, já são contados cerco de 100 milhões de fãs da Hallyu mundialmente. Então, trata-se de um nível de crescimento bastante rápido. Tinha-se falado sobre chegar a esse número apenas agora, no final de 2021, porém ele foi batido já no final de 2020 e início de 2021. Então, esse rápido crescimento dos fã clubes, do consumo oficial da Hallyu internacionalmente já é inerente à onda sul-coreana. Mas, como já se debate dentro dos estudos da Hallyu, esse potencial de expansão do fenômeno ainda é bastante enraizado em questões extremamente regionais. Esse potencial de expansão pelo mundo, que se chama de “global”, ainda está bastante limitado, especialmente em razão de um consumo muito não oficial destes produtos, através da internet, de downloads e não exatamente estruturado, por exemplo, por emissoras televisivas, ou por cinemas, ou até mesmo por plataformas.

A Netflix é uma plataforma de consumo legal, o que potencializa e fortalecer essa expansão de forma oficial mesmo. Então, dentro da própria indústria, esse debate é ambíguo. São perguntas do tipo: pra onde que nós vamos, o que vai ser melhor para nós como uma indústria tanto localmente, quanto globalmente? Uma das primeiras questões que foram levantadas, uma vez que a Netflix começou a expandir-se de forma muito acelerada dentro da Coreia do Sul, foi o fato de que ela poderia modificar a indústria.

E se modificasse a indústria, quais seriam as formas de preservar não só o lucro, mas também as características sul-coreanas em meio a esse mercado em mudança. Foi debatido também o que a Netflix, como uma empresa estrangeira, poderia tirar da Coreia do Sul, da Hallyu, como um fenômeno nacional, um fenômeno local, que gerava lucros para o país. Assim, as emissoras de TV aberta sul-coreanas, como a KBS, MBC SBS, primeiramente, pensaram em negar a venda da programação para auto preservarem-se. Já os canais da TV fechada e os estúdios tiveram uma outra abordagem do tipo: precisamos expandir pelo resto do mundo e a Netflix vai ser importante para isso.

De uma forma ou de outra, a fim de protegerem o mercado local, a fusão de duas plataformas de streaming locais, a Oksusu e a pooq, aconteceu em 2019. A nova plataforma, que foi chamada de WAVVE (clique aqui para conhecer), soma os esforços das três maiores emissoras abertas e do conglomerado SK Telecom. A WAVVE foi pensada com o objetivo de enfrentar a crescente força da Netflix no cenário sul-coreano, além de ser uma plataforma streaming local com intenção de expansão pelo mundo através da produção de conteúdo original, da disponibilização da produção televisiva e cinematográfica local, e das parcerias com outras plataformas regionais. O movimento gerado pela WAVVE é uma clara posição de enfrentamento à invasão estrangeira no mercado de streaming nacional.

Conforme artigo publicado, de acordo com Korean Broadcasting Association, em 2018, uma aliança com a Netflix seria o ponto inicial da destruição da indústria midiática sul-coreana. Então, existia essa percepção do malefício gerado pela Netflix ao apropriar-se do modo de fazer e de pensar televisão sul-coreana e ao utilizar dos estúdios, dos licenciamentos de produtos e dessa ponte que a Coreia do Sul tornou-se para o resto do leste e do sudeste da Ásia. Na nossa perspectiva, recomendamos o conceito do autor Dal Yong Jin, que também debate a onda sul-coreana.  Em 2015, ele lançou o livro “Plataformas digitais, imperialismo e política cultural”, onde aborda o que chama de imperialismo de plataforma. O que seria, então, esse novo tipo de imperialismo? O conceito traz questões já conhecidas do imperialismo cultural e, até mesmo, da globalização e, de uma certa forma, esse novo imperialismo continua concentrando capital e reafirmando o lugar de poder do ocidente.

É através das plataformas online que se evidência o papel das corporações transnacionais em seus privilégios nas relações de poder com os países não ocidentais, especialmente através de trocas tecnológicas e fluxos de capital desiguais… O imperialismo de plataforma e as formas de dominação dos países de fora do eixo central pelo Estados Unidos são diferentes, porque a propriedade intelectual dos valores comerciais está embutida em plataformas, de forma mais efetiva para acumulação de capital e expansão de poder”. “Plataformas digitais, imperialismo e política cultural”, por Dal Yong Jin

Assim, é possível perceber que a desigualdade de poder continua sendo uma questão muito preponderante, muito clara nas relações existente, potencializando, então, o que se chama de assimetrias. São essas diferenças claras nos fluxos globais de consumo, aqui, especialmente, focado no consumo do audiovisual, de culturais e também nessa manutenção de hegemonia dos Estados Unidos como grande centro de poder e influência cultural no âmbito global. Assim, as empresas online como Facebook, Google, Apple e a própria Netflix, por exemplo, não só modificam a forma de pensar o audiovisual, mas também a forma de pensar o modelo de produção e o modelo de venda desses produtos.

Crédito: Dal Yong Jin.

Mateus Nascimento: o enfrentamento ao imperialismo de plataforma, então, parece não ser apenas algo vinculado ao setor empresarial. O Estado sul-coreano também está presente. Assim, a iniciativa para encontrar uma saída para a forte presença da Netflix poderia contribuir na consolidação da Coreia do Sul como um modelo para os seus vizinhos de como enfrentar este imperialismo? E, sendo ela um modelo, poderia a Coreia também aprender com os seus vizinhos?

 Daniela Mazur: os mercados que estão fora do eixo central, EUA e Europa Ocidental, eles precisam expandir dentro de um movimento de contra fluxo, no intuito de poder adentrar o mercado global. A ambiguidade vista na Coreia, também já existia em outros países. Por exemplo, uma questão que me chama muito atenção, e que está em um texto da pesquisadora Yu-Kei Tse, é o termo “Black Ship”. Tse emprega este termo para debater especialmente a Netflix no Japão e em Taiwan. Este conceito deriva da expedição militar estadunidense que chegou ao Japão no final do século XIX. Na segunda metade do século retrasado, o Japão foi forçado a abrir sua economia para os países do ocidente.

Por isso, o uso deste termo descreve o impacto no mercado local que o lançamento de algum produto ou de algum serviço estadunidense provoca. E agora também é usado para falar da presença da Netflix no Japão. Ele ainda traz a noção de que a Netflix é, ao mesmo tempo, um maleficio que modifica e destrói a estrutura do mercado nacional, mas também é uma mediadora para o consumo de produtos de diversas partes do mundo. Então, tomando este contexto do Japão, é possível dizer que a Coreia do Sul reage e pode apresentar-se sim como uma forma viável de resistência e um modelo que pode ser replicado e aprendido, tanto de forma positiva, quanto negativa.

Dica de leitura Dani Mazur: “Black Ships? Locating Netflix in Taiwan and Japan”, de Yu-Kei Tse

Negativa do ponto de vista do que não fazer também. Por exemplo, um dos pontos levantados pela imprensa sul-coreana na época foi o fato de que a Coreia do Sul precisava ter preservado mais a sua indústria, antes de abrir-se tão facilmente para a entrada da Netflix. O debate mencionou até qual teria sido a razão que levou o Governo Nacional a não proteger o mercado local, assim como China fez.

Os chineses impuseram impostos e outras restrições para que a plataforma estadunidense não entrasse no mercado deles. É preciso lembrar também que a China tem um mercado de plataformas streaming e vídeos muito forte. Uma dica, por sinal, é a plataforma IQIYI, que tem a abreviação QYI (clique aqui para conhecer a plataforma) onde você tem alguns conteúdos (dramas chineses e coreanos) que estão abertos mediante à exibição de alguma propaganda.

Crédito: South China Morning Post.

Então, o governo chinês preferiu preservar seu mercado frente a essa força, que é a Netflix. Assim, eu respondo a sua segunda pergunta, que a Coreia do Sul tem muito a aprender com os países vizinhos sim. E não apenas em proteger o mercado, mas ainda no que diz respeito à abordagem cultural. A Ásia continua sendo o maior mercado de consumo da Hallyu por mais que essa expansão esteja bastante presente em todo o mundo. Esses mercados regionais da Ásia são fontes não apenas de compreensão e proximidade audiovisual, mas de temáticas a serem abordadas, como também de lógicas de mercado, lógicas nacionais que podem ser importantes para facilitar e aumentar o consumo e o alcance desses produtos culturais sul-coreanos.

A Coreia do Sul precisa continuar observando e precisa continuar apostando nos mercados vizinhos, a fim de que continue trazendo produtos que dialoguem culturalmente com esses países e não que os afastem. Um outro debate que foi muito levantado no momento em que a onda coreana começou a crescer, no final dos anos 1990, início dos anos 2000, foi este possível distanciamento dos consumidores regionais. Quando eu falo de mercado de consumo regional, falo de forma genérica mesmo. Falos dos produtos japoneses que eram, ali nos anos 1980 e 1990, os grandes mediadores culturais da região, especialmente em questões audiovisuais.

No entanto, os produtos japoneses começaram a ter menos apelo com o público asiático, em razão de um distanciamento de questões culturais próximas e tradicionais, interessantes a um entendimento regional cultural, e começaram a fomentar uma aproximação com o público ocidental. Então, a Hallyu se não observar isso atentamente, pode ter o mesmo destino do Japão futuramente, na perda desta posição de mediadora cultural regional e de centro de influência cultural. Eu, como brasileira e pesquisadora dos fluxos televisivos globais, coloco a seguinte questão: como a indústria posicionou-se oficialmente para que a Netflix fosse de alguma forma controlada e seus efeitos não impactassem o mercado nacional? Aí está a chave da questão.

Dica de leitura da Daniela Mazur

O Brasil, por exemplo, já tem a Netflix em atividade há dez anos no seu mercado. Porém, nós ainda não implementamos nenhuma lei pra regularizar esta e outras plataformas. Já a Coreia, no ano passado, implementou uma lei que foi chamada de Lei Netflix, que faz parte do ato de negócios das telecomunicações sul-coreanas e que impõe não apenas às plataformas estrangeiras, mas também a todas as plataformas digitais que estão em atividade no mercado sul-coreano, a responsabilidade pela qualidade do serviço de rede. Um dos debates que ocorreu na indústria abordou o uso de dados. A Netflix e a Google utilizavam dados de forma livre, enquanto as empresas nacionais precisavam pagar taxas e garantir a manutenção da qualidade. Isso foi importante para organizar o consumo de rede e dados e fazer frente a essas grandes plataformas que vão continuar a entrar no mercado.

Assim, a Netflix teve de criar um escritório de produção de conteúdo na Coreia, assim como também espaços oficiais de produção dentro do país. Isso não só regulariza, mas também aumenta a capacidade de controle dessas produções e de seus lucros. Afinal, o que está em jogo não é apenas o capital em si, mas o valor imagético, a forma como a Coreia apresenta-se para o mundo, que é, em grande parte, realizada através destes produtos culturais. Portanto, há uma imposição de questões nacionais e se a Netflix tem interesse em investir neste produtos sul-coreanos, ela precisa, então, jogar com as cartas colocadas na mesa. Do ponto de vista brasileiro, eu quase invejo isso, porque aqui no Brasil não tem praticamente nada nesse sentido. Pouco se pensa no Brasil em favor da “saúde” da produção audiovisual nacional.

Leia mais (em inglês) no The Korea Herald: “Korea reveals details of ‘Netflix law'”.

Alessandra Scangarelli Brites: vamos agora analisar um pouco a onda cultural sul-coreana através da Netflix. Você que já realizou muitos estudos sobre os fãs brasileiros, como avalia o impacto da Hallyu, através da Netflix, nos grupos de fãs do Brasil?

 Daniela Mazur: uma das questões mais centrais aqui é essa mudança de um ambiente de consumo informal para o de um ambiente de consumo formal. A TV Loading, que teve pouco tempo de vida, realizou a transmissão de dramas sul-coreanos pela TV aberta brasileira. Hoje, alguns outros produtos coreanos podem ser vistos na Rede Brasil, que é uma emissora menor ainda, com pouca presença em âmbito nacional. Os dramas coreanos reconhecidos, que tiveram importante expansão pelo mundo, como o “Descendentes do sol” e o “Iris 2” foram exibidos na televisão brasileira.

Mas, posteriormente, uma vez que voltamos à estaca zero com o fim da TV Loading, novamente não temos uma plataforma. As emissoras nacionais fechadas transmitem conteúdo sul-coreano de forma muito esporádica e em horário não comercial. Então, nós temos um consumo oficial bastante limitado. Os festivais de cinema são um espaço em que você pode assistir a um filme coreano, porém são poucos dentro de uma programação extensa e com aquele filtro advindo de festivais europeus que você mencionou anteriormente, já que nossos festivais seguem muito a curadoria dos eventos de grande magnitude como Cannes e Berlim. Então, a Netflix com o seu catálogo brasileiro de produções sul-coreanas licenciadas e originais está em expansão.

A Netflix dos EUA, por exemplo, é maior em número de produtos. De qualquer forma, isso é bastante importante, porque o acesso é facilitado. A Netflix não revela de forma clara os seus números, mas há algo em torno de 10 a 20 milhões de assinantes no Brasil. Para um país de 200 milhões de habitantes, ainda é uma parcela pequena, porém que tem forte penetração. É um número maior do que de assinante de televisão fechada no país. Há também a disponibilização de conteúdo em versão dublada. Isso é uma mudança radical para o fã brasileiro. Anteriormente, eu falo pela minha experiência, era difícil conseguir assistir um drama coreano, porque era preciso fazer o deslocamento do Rio de Janeiro para São Paulo, ir ao bairro Liberdade, para comprar um pacotinho de DVDs pirateados com legenda em português.

Sem falar que a internet banda largar nos anos 2000 não era lá grande coisa. Conseguir conteúdo legendado em português era difícil. De maneira que os falantes da língua inglesa tinham vantagem. Contudo, estamos falando de experiências de consumo no âmbito da pirataria. Já com a Netflix, há o consumo oficial e pago dessas obras. Mesmo assim, ainda é um mercado de nicho, pois a própria Hallyu tem limitadores como ser nativa de um idioma que poucos falam no mundo. Assim, a Netflix acaba sendo uma centralizadora desse consumo, o que também é problemático, porém ao mesmo tempo é instrumental para a Hallyu continuar reverberado e chegando ao público brasileiro.

Crédito: Netflix.

Mateus Nascimento: aproveitando esta linha do impacto da Onda Sul-Coreana em outros países, quero partir para as relações da Coreia do Sul com seus vizinhos. Sabe-se que elas nem sempre foram, ou ainda são harmônicas, por uma série de questões. Que papel a Hallyu tem neste processo político, na sua opinião?

 Daniela Mazur: para além de debates como Soft Power, é preciso falar um pouco de como reestruturar algumas relações entre os países, especialmente países vizinhos. Com a Coreia do Sul, eu acho que, no final das contas, é muito mais uma atualização de uma imagem internacional que até muito pouco tempo era relacionada ao passado da guerra, da fome, da ditadura, da falta de credibilidade em geral.

Então, a Hallyu tem esse efeito de equalização do que é a Coreia do Sul para o mundo e eles tem noção desse papel e utilizam-se fortemente dos seus produtos para promover esta narrativa. Os dramas, filmes, música, gastronomia, tudo visa promover uma ideia atualizada mais positiva da Coreia. Eu acho que esse é papel mais valioso da Hallyu. Para além disso, as trocas culturais que podem ser realizadas e concretizadas através desses produtos possibilitam à Coreia do Sul ser um centro de cultura pop juvenil do leste asiático.

Dica de Leitura da Dani Mazur: “In between the global and the local: Mapping the geographies of Netflix as a multinational service”, de Amanda D Lotz

Alessandra Scangarelli Brites: alguns países como o Vietnã, que tem uma história complexa com a Coreia, (lembremos que a Coreia do Sul cedeu às pressões dos EUA e enviou tropas para a Guerra do Vietnã), hoje estão reticentes quanto à influência da Hallyu em suas produções audiovisuais. Em um último projeto lançado sobre a única rainha vietnamita Lý Chiên Hoàng, muitos no Vietnã reclamaram da imagem muito sul-coreana da série e da contratação do roteirista Paek Seong Og.

Muitos afirmam que um roteirista sul-coreano tratar de um assunto da história do Vietnã não seria adequado. O Vietña que agora começa a crescer economicamente, após anos de guerra. Da mesma forma houve reclamação de uma imagem muito sul-coreana dos artistas, com uma pele mais clara, por exemplo. Levando este contexto em conta, poderia estar surgindo uma espécie de sub imperialismo cultural sul-coreano na Ásia?

Daniela  Mazur: no momento que se fala de novos centros de poder, dentro de regiões e dentro de outras perspectivas, também é preciso refletir sobre a influência que esse poder exerce sobre quem está dentro desse raio de influência. Não é possível desconsiderar a ascensão poderosa da Coreia do Sul, no Leste e no Sudeste Asiático, especialmente através de questões relacionadas à Hallyu e aos padrões que estão sendo estabelecidos por ela. Esses padrões que estão sendo escoltados aos vizinhos, fazem parte da lógica regional.

Leia Mais na Revista Intertelas: Organização Vietnam Centre lança projeto de série sobre a única rainha do Vietnã Lý Chiêu Hoàng

Uma das questões mencionadas tem relação com o tipo valorizado de beleza. Ou seja, como esses padrões de beleza tornam-se ações e reações dentro de outras culturas, dentro de outras realidades nacionais, especialmente dentro de outras realidades estéticas. Falando nessa linguagem marqueteira, a estética sul-coreana é um sucesso internacional. O Vietnã, por exemplo, foi um dos primeiros grandes consumidores da onda coreana. Foi um desses primeiros grandes consumidores e importadores, tanto que a grade televisiva local no país já foi mais da metade preenchida por produtos da Hallyu.

Em números concretos, alguns autores falam de 58% das emissoras sendo tomadas por um país específico nessa leva de produtos importados. Em um período de crise, como o da crise financeira asiática, a cultura pop sul-coreana cresceu, assim como suas exportações, já que países com economias mais frágeis ficaram mais limitados para realizarem produções próprias e precisaram de produtos importados acessíveis para preencherem suas grades de programação.  Nessa época, a Coreia do Sul teve a estratégia de entrar nestes mercados regionais da Ásia com produtos culturais de preços bem acessíveis. Os dramas coreanos eram um décimo do preço dos dramas de Hong Kong e um quarto dos dramas japoneses.

Elenco de Lý Chiêu Hoàng (Imperatriz). Crédito: 2dep.

O Vietnã foi um desses casos especiais, onde a indústria cultural ainda era muito dependente de importação. Então, já há 30 anos a Coreia do Sul ocupa um espaço particular na programação do Vietnã. Isso é inegável. E quando falamos desses padrões que estão sendo exportados, um dos pilares são as coproduções. Mais especificamente, o pensar a produção nacional e internacional através do ideal da coprodução entre a Coreia e outros países.

Da mesma forma, como já falamos antes, isso ocorre também nas produções sul-coreanas atuais. Muitas dessas contam com a participação de produtores e roteiristas de fora, normalmente utilizando de uma estética ocidental, especialmente do Estados Unidos e da Europa Ocidental. Nessa leva globalizante, que a gente também não pode negar que exista, A Coreia ocupa este lugar de influenciar as indústrias locais dos países vizinhos, seguindo a mesma linha de querer reestruturar a forma de pensar televisão nesses países. Neste ponto, existe sim a imposição desses padrões à indústria local dos vizinhos.

Dica de Leitura da Dani Mazur: “Transnationalism, cultural flows, and the rise of the Korean Wave around the globe”, de Dal Yong Jin

Mateus Nascimento: eu quero emendar nessa questão o problema da representação nos dramas sul-coreanos. A cultura sul-coreana está cada vez mais presente e conhecida no mundo, os números estão aí para comprovar.  É sabido que a Coréia passa por uma profunda transformação, em que alguns elementos do país estão no processo de serem repensados, como a questão populacional, a baixa natalidade e a chegada de um número considerável de imigrantes que ainda se encontram marginalizados naquela sociedade.

Estamos falando aqui de questões relacionadas aos direitos humanos, o que toca no tema das minorias também. Nas produções sul-coreanas, com raras exceções como Itaewon Class, não há representação destes novos integrantes da sociedade sul-coreana atual. Você acha que a Coréia no futuro estará mais aberta para realizar produções que abordem essas questões e que tenham personagens não apenas coreanos?

Daniela Mazur: expressões múltiplas, não só culturais, mas raciais que a Hallyu impacta, hoje, no mundo, falam não só sobre a sua multiculturalidade, mas também da força do seu potencial de alcance. Então, trazer essas representações, essas experiências é de extrema importância. Até dez anos atrás, a Coreia do Sul era considerada um país de raça única. Era um país muro, com discurso completamente errôneo, mas era compreensível dentro de uma perspectiva de uma nação que sofreu com invasões e colonizações e depois permaneceu por muito tempo fechada.  Contudo, uma vez que a Hallyu potencializa a expansão da Coreia, e estamos chegando a um número de 100 milhões de fãs no mundo, como a indústria sul-coreana pode negar ou fingir que a multiculturalidade não existe no país, ou que seja, no mínimo, importante?

Especialmente nas grandes cidades, onde estão uma das maiores regiões metropolitanas internacionais, onde há um potencial de diálogo com o mundo bastante grande. Seul, a capital, é uma cidade global. Não tem como negar a vivência multicultural de hoje. Nesse cenário de diálogos culturais, milhares de possibilidades podem vir a acontecer, mas sabe-se que nem tudo são flores. Especialmente quando falamos de questões raciais, de trocas culturais, e de religiões que ainda não são vistas na Coreia dentro de um espectro de entendimento de mundo e de força global. O governo sul-coreano tem projetos para integrar melhor os imigrantes, mas tudo ainda carece de real ação, para além das boas intenções. Já os dramas são plataformas excelentes para mostrar uma experiência multicultural sul-coreana.

Graças à Hallyu, a Coreia tornou-se um polo de atração de pessoas, tanto para o turismo, como para a imigração. Lembro de um programa, o Abnormal Summit, ou o Non-Summit, que tinha um tom muito diplomático. Nele participaram homens imigrantes na Coreia que relatavam suas experiências no país. o representante brasileiro foi o Carlos Gorito. Lembro que ele fazia parte do programa em que a grande intenção era debater diferenças culturais e como elas apresentavam-se dentro e fora da Coreia.

Mas, a grande questão do programa era a de encontrar rastros dessas culturas e a presença delas na vivência sul-coreana, saindo daquela ideia normalmente apresentada do exótico estrangeiro. O drama Itaewon Class trouxe questões ainda consideradas tabus na Coreia como a situação dos LGBTQIA+  e do racismo. No entanto, trata-se ainda de um debate muito, mas muito raso e que precisa ser aprofundado. A Coreia não será nada inteligente se não explorar a oportunidade de dialogar com o mundo, já que seu fenômeno cultural tem como base o multiculturalismo. E o debate precisa acontecer não só na mídia, mas também na legislação nacional.

Alessandra Scangarelli Brites: para a pergunta final, ainda seguimos nesta linha das trocas culturais com o mundo. A Coreia aprendeu e absorveu da experiência de outros países desenvolvidos como EUA e Japão. Mas das nações que ainda não apresentam o título de desenvolvidas, a Coreia teria algo a aprender com eles especificamente? 

Daniela Mazur: neste sentido, agradeço muito por ser brasileira nesse momento, pois o Brasil é um precedente cultural pra Coreia do Sul, especialmente quando abordamos a questão da exportação de audiovisual. As novelas brasileiras são um contra fluxo global importante, um marco histórico essencial, em especial nas décadas de 1970. São já cinquenta anos desse potencial globalizante das telenovelas brasileiras. Os dramas televisivos foram os primeiros produtos de exportação concreta da Coreia do Sul, especialmente para a China.

O caráter melodramático dessas produções tem muito em comum com a aposta histórica das novelas brasileiras, o que possibilitou a exportação dos produtos sul-coreanos para a nossa região também. Outra questão é que, novamente, a Coreia do Sul adentrou espaços no mundo não tão explorados pela indústria dos EUA. E as trocas culturais com outros países alimentaram e seguem alimentando uma renovação e uma expansão da indústria audiovisual sul-coreana. A troca da Coreia do Sul com países periféricos ajuda ainda a trazer novas narrativas e novas visões de mundo que rompem com o ideal cultural eurocêntrico que ainda se perpetua muito no sistema mundial e promove esta divisão global entre as nações.

Referências e Dicas de séries da Dani Mazur

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por Anders Noren

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