
Muitos acreditam saber o que é uma guerra, mas apenas quem teve esta experiência sabe o seu real significado. É por isso que testemunhas da história são tão importantes, pois documento algum pode descrever melhor uma guerra, do que o relato daqueles que participaram dela. Neste quesito, a vivência fala mais alto que qualquer teoria. Obviamente, a checagem fria dos fatos faz-se necessária. Contudo, é preciso também não esquecer o impacto humano de escolhas políticas, coisa que muitos estudiosos, às vezes, parecem ignorar.
Em conceituados centros de pesquisas, grandes teorias e estratégias, que irão afetar a vida de muitos, são encarados como simples equação acadêmica, às vezes, até reduzidas a jogo de “War”, ou a um videogame violento e eletrizante. Uma banalização preocupante, muito em voga atualmente e que chega a considerar a existência e a necessidade de possuir uma bomba atômica algo normal, ignorando o seu poder destrutivo.
O livro “A Última Mensagem de Hiroshima: o que vi e como sobrevivi à bomba atômica” (2017, clique aqui), escrito pelo sobrevivente Takashi Morita, hoje no auge de seus 90 anos, tenta levar adiante o relato de quem sobreviveu ao ataque e às consequências de uma guerra total às novas gerações. Morita não esconde nada do leitor. Ele lutou pelo Japão, foi membro da Kempeitai, a temida Polícia Militar do Exército Imperial Japonês e teve um irmão que chegou a ser Kamikaze. Provavelmente, sua família também tenha aderido aos extremismos do nacionalismo, o que fez os mais jovens odiarem os classificados inimigos do “grande Japão”, seguindo a cartilha de servir à nação a todo custo, como a educação promovida naquela época fez acreditar.

Mas a vida seria dura com ele e todo o povo japonês, provocando uma mudança radical na forma de pensar do jovem Morita. Mesmo ainda fazendo parte da estrutura Estatal daquele Japão imperialista e belicoso, ele começaria a questionar as escolhas das principais lideranças do país, em especial a preferência em dar continuidade a um conflito já perdido. A honra era certamente mais importante do que o sofrimento que o povo suportava, após anos de guerra. Trata-se de uma ideia fundamentalista e equivocada de uma suposta superioridade nipônica sobre os demais povos asiáticos. Enfim, será que valeu tanto a pena? Morita não chega a tocar em todas essas questões delicadas, porém ressalta a incompreensível atitude das lideranças japonesas diante da evidente derrota e das privações do povo.
Desta forma, acaba tendo um ato de grande coragem perante uma sociedade que até hoje, neste início do século XXI, não conseguiu pôr fim ao capítulo da Segunda Guerra, da Segunda Guerra Sino-Japonesa e inclusive de assumir responsabilidade por seus atos imperialistas e colonizadores na Ásia. Para muitos no Japão é preferível que todos esqueçam e ignorem o que é impossível de ignorar e esquecer. Porém, em seu espectro particular, a família Morita acabou por escolher a paz, a empatia e a compreensão mútua, desde a experiência com o primeiro ataque nuclear da humanidade.
Estamos diante de uma publicação bastante sensível, onde podemos ver a trajetória de uma família que para além de sobreviver, enfrenta todas as contradições que a posição de seu país trouxe para si. Na obra é apresentado um pouco sobre a condição dos imigrantes provenientes de países que fizeram parte do Eixo derrotado. Certamente, o mundo, por anos a fio, não seria tão simpático com eles. Vale destacar ainda que Morita também não se esquiva de outros assuntos polêmicos, a exemplo da recusa do governo japonês de atender às vítimas da bomba, em especial relata o desprezo de parte da sociedade nipônica pelos seus emigrantes, acusados de serem egoístas e traidores da pátria, por terem abandonado a nação em condições tão deploráveis.

Contudo, o incentivo à imigração para o Brasil foi iniciativa do próprio governo nipônico… é imperativo salientar. De uma forma ou de outra, a família Morita segue o seu rumo em busca de uma vida melhor em terras estrangeiras, tendo de adaptar-se à cultura brasileira e enfrentar o estigma de ser um sobrevivente da bomba nuclear. Porém, para quem passa por uma experiência como esta, tudo o que vem depois é possível enfrentar, afirma o tenaz Morita. Seu temor maior sempre foi enfrentar as consequências da radiação e seus reflexos em sua saúde, de sua esposa e de seus filhos. Ele inclusive relata a dificuldade de ser levado à sério por médicos brasileiros em suas preocupações. Uma atitude típica da medicina ainda pouco humana e empática que persiste no Brasil.
No entanto, tais dificuldades tornaram incentivo para uma nova empreitada que ele iniciou junto à esposa Ayako Morita: promover a união do Hibakushas (sobreviventes da bomba) em solo brasileiro, criando a Associação Hibakusha Brasil pela Paz. Foi a iniciativa que o levaria de volta ao Japão, que o fez enfrentar o governo local a cumprir com a responsabilidade de ajudar às vítimas dos ataques nucleares e o começo de uma nova fase de sua existência, dedicada a propagar a mensagem de paz e o fim da proliferação de bombas atômicas.
Morita foi à ONU, passou por vários cantos do mundo, buscando a conscientização das pessoas. Tornou-se ainda cidadão paulistano e a Escola Técnica Estadual Takashi Morita presta-lhe homenagem, sendo também parte de seu legado. Contudo, ele ainda tem um grande oponente a sua causa: a inclinação milenar da humanidade de viver perpetuamente em estado de divisão, desconfiança e guerra.
A Segunda Guerra Mundial, até hoje, rende debates intensos e provoca interesses de gerações. Trata-se de algo compreensível, já que após mais de 70 anos, os desfechos e resultados do conflito, que tirou em torno de 50 milhões de vidas, são refletidos até hoje. A história é um processo contínuo, o que significa dizer o seguinte: nada acontece por acaso.
Uma situação política atual é um desdobramento do passado. Algo que parece óbvio de ser mencionado, porém a insistência de intelectuais em geral, inclusive acadêmicos, de abordar a história como se ela ocorresse de forma compartimentada e os fatos do presente não tivessem relação com o passado, faz com que questões tão simples tornem-se difíceis de serem compreendidas.

Isso se dá também porque há outros interesses para além do científico no mundo acadêmico, quando tais instituições fazem parte de um pilar importante de um projeto político voltado ao objetivo da conquista e perpetuação do poder. Em outras palavras, a batalha pela abordagem histórica da Segunda Guerra continua em voga e, propositalmente, atores importantes para a vitória aliada, como os fatos históricos e seus números deixam explícito, foram praticamente esquecidos, a exemplo do papel da União Soviética e da China. Da mesma forma, os excessos da atuação dos aliados também acabaram sendo menorizados, menos questionados, como foi o ataque nuclear desnecessário a um Japão já vencido.
A introdução da bomba nuclear na história é resultado da sede de poder que a fez surgir em primeiro lugar. A ideia de ter uma arma capaz de dizimar a todos e, portanto, de ter poder e controle absoluto sobre os demais. Nesta linha, Truman encontrou-se com Stalin, no intuito de provar a superioridade bélica estadunidense. Talvez fosse uma tentativa de diminuir a preponderância de uma União Soviética na época, responsável por combater e vencer 80% das forças nazistas que estavam alocadas na Europa do Leste e, consequentemente, apesar de milhões de mortos e uma infraestrutura material destruída, ainda ter fôlego para enfrentar o Japão. Há quem diga que nesta demonstração de superioridade, Truman não saiu vencedor.
Afinal, parece que o líder soviético, através de suas redes de espiões, já sabia da existência de tal bomba. Alguns anos depois, com o ajuda do cientista Klaus Fuchs que participou do projeto Manhattan, iniciativa responsável por criar a primeira bomba nuclear, os soviéticos iriam ter conhecimento da Operação Dropshot. Conforme o historiador N. Lebedev, a intenção era realizar o lançamento de 300 bombas nucleares. De acordo com o site Russian Beyond, outras 29 mil bombas convencionais deveriam atingir 200 alvos e cerca de 100 cidades e vilas da URSS, no intuito de destruir 85% do campo industrial soviético.

O pensamento do cientista alemão foi programático e estratégico dentre as possibilidades existentes. Não há como impedir que não façam a bomba, mas é possível que ela não seja novamente empregada em um outro ataque, se o outro país alvo tiver a sua. Assim, os soviéticos iniciaram a construção da sua bomba. Era o início da Guerra Fria e da corrida armamentista. E a bomba nuclear, assim como o uso da energia nuclear, passaram a ser corriqueiros em nosso dia a dia.
Ser um país nuclear, um Estado nuclear foi e ainda é o objetivo de muitas nações, em especial em zonas de conflitos, ou com características históricas que provocam tensões diplomáticas recorrentes. A máxima é: se meus vizinhos estão realizando testes nucleares, eu também devo fazer. Devo proteger a minha pátria, devo garantir que nunca sejamos atacados. Aliás, quem tem poder nuclear dificilmente será alvo de invasões ou outras ameaças muito possíveis no cenário geopolítico. Esta é a crença do senso geopolítico comum.

Neste cenário, muitos pensam que é difícil dar crédito aos Moritas ainda vivos que, com toda a insistência, permanecem firmes em suas posições de que um mundo pacífico é possível. Certamente, seus esforços não são em vão. Você pode conhecê-lo, assim como a outros sobreviventes, Kunihiko Bonkohara e Junko Watabane, parceiros de longa de Morita. Eles estão juntos em apresentações com o elenco do espetáculo do teatro documental organizado pelo projeto Sobreviventes pela Paz e promovido pela Nagai Produções.
Em “Os Três Sobreviventes de Hiroshima” (clique aqui), eles narram suas experiências pessoais durante o ataque nuclear, impactando a muitos que ousam escutá-los. São pessoas mais do que necessárias. Em especial, para lembrar aos grandes estrategistas geopolíticos das consequências de suas ações. Afinal, um mundo sem guerras começa pela preservação da memória e por mostrar as consequências de promover a violência e a competição desenfreada por poder entre as nações.
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