Em resposta ao ocidente, o cinema chinês soou o clarim da guerra cultural

“A Batalha do Lago Changjin” (2021), por Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam. Crédito: reprodução da internet.

Com o colapso da União Soviética, os anos 90 visavam um futuro promissor para os operadores políticos e militares do império estadunidense. Foi uma época louca, de mudanças rápidas e brutais. O mundo parecia convergir para um ponto determinado, que aceitávamos sem maior reação. Aquilo que Fukuyama bradou como “O Fim da História” mudou a agenda política, social e econômica do mundo – em especial da esquerda ocidental.

O cinema industrial do EUA, desobrigado das suas funções alienantes, desarmou – em partes – a mobilização de guerra criada na era Reagan. Não cabia mais rotular russos, em especial, como seres frios e desumanos. O bêbado Iéltsin prostrava-se ante o ocidente, enquanto o império soviético ruía. Filmes estadunidenses do final dos anos 90 e começo dos 2000 apresentavam, então, russos quase infantis, tateando suas primeiras experiências capitalistas. Assistam o começo do filme “Náufrago (Cast Away)” – (2000), dirigido por Robert Zemeckis como exemplo acabado deste período.

O mundo geopolítico adormecera. A transição dos anos 90 para os 2000 prometia uma década de consumo e amenidades. Mas tudo mudou com o 9/11. Passado o susto, os Estados Unidos puseram-se em marcha. E seus grandes estúdios produziram, nos últimos 20 anos, uma infinidade de filmes comerciais, marcadamente oficiais, carregando nas tintas da nova ideologia do país, a “Guerra Contra o Terror”. Poucos filmes avaliaram criticamente este período. Com pouca resistência crítica de alguns realizadores e atores, Hollywood abraçou a militarização do seu cinema, sem muita precaução. Não, não esbarraram no pastiche patriótico de Rambos e Bradocks. Mas, ainda assim, o cinema estadunidense pôs-se em marcha.

No terceiro filme da série, Rambo vai ao Afeganistão, durante a guerra contra os soviéticos. Crédito: Cine Esquema História.

Filmes como “Falcão Negro em Perigo (Black Hawk Down), de 2001, dirigido por Ridley Scott ou mesmo “Guerra ao terror (The Hurt Locker)” – lançado em 2008, que teve Kathryn Bigelow como realizador, apresentaram as forças armadas como a reserva moral da nação. Discurso esse que se mostrou progressivamente perigoso, para o próprio sistema político estadunidense. Mas o desalento da ideologia vista através dos filmes é matéria para o outro texto. O longo preâmbulo finalmente encontra o seu objetivo: lembrar o leitor da capacidade política e ideológica do cinema. E não precisamos lembrar de Eisenstein ou Leni Riefenstahl para entender o papel do cinema – e das artes, como um todo – no complexo jogo geopolítico, e como movimenta-se a indústria cultural dos países protagonistas.

Ficou famosa a expressão “Soft Power” criada pelo acadêmico de Harvard, Joseph Nye. O intelectual descreve, em seu livro “Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004)”, a forma como a política apropria-se dos meios culturais – da indústria cultural propriamente dita – para o atingimento dos seus interesses específicos. O fenômeno, obviamente, não é novo. Mas, devidamente “fichado” por Nye, ele ganhou, nos últimos anos, contornos e empregos cada vez mais sofisticados.

Toda uma nova forma de operar a política – interna e externa – foi ressignificada com o emprego dos estímulos culturais e potencializada pelas redes sociais. A primavera árabe, os levantes populares – jovens, na sua maioria – em países como Brasil, Turquia, Ucrânia, na província chinesa de Hong-Kong…todos eles, insuflados, mais ou menos, por tecnologias ardilosas e por um sofisticado aparato cultural, composto por documentários, filmes, músicas ou qualquer outro estimulante cognitivo. Um verdadeiro arsenal psíquico, capaz de definir o sabor do vento da história em várias regiões e sociedades.

Crédito: reprodução da internet.

Exemplos? No documentário “Capacetes Brancos ( The White Helmets)” , 2016, de Orlando von Einsiedel, seus realizadores mostram o cotidiano do pelotão de resgate sírio nas áreas ocupadas pelas forças insurgentes e contrárias à Damasco. Bem…eles são treinados na Turquia, esbravejam contra os ataques da força aérea russa – que apoia Assad – e verbalizam discursos de liberdade, em meio ao bravo serviço de resgate das áreas afetadas. O filme ganhou o Oscar de melhor documentário daquele ano.

Num determinado trecho, a câmera capta uma aeronave russa mergulhando para atacar seu alvo. Ao fundo, escutamos os locais esbravejaram: “Covardes”. O apelo civil contra o horror dos ataques aéreos comove desde Guernica. Nada é mais violento e covarde do que o emprego de sofisticado engenho para atacar imprecisamente um alvo civil. É a pura lógica do horror selvagem. Os versados em semiótica, comunicação e psicologia de massas, da engenharia social, poderiam escrever páginas e páginas sobre esse tema. Não me compete e não cabe aqui. Voltemos ao cinema.

Russos e chineses (em especial os primeiros), alvos presentes de caracterização rasteira dos filmes de ação do ocidente, organizam-se. Usam do vigor do seu aparato audiovisual para disputar o campo das narrativas nos mercados audiovisuais globais. Os russos já colocaram seu arsenal fílmico em marcha, produzindo especialmente filmes de guerra, que exortam o sacrifício do povo russo na guerra patriótica (1940-1945). Produzem em escala semelhante à soviética, ainda que a qualidade dos mesmos não seja uniforme. Existem, no entanto, bons filmes, que podemos tratar por aqui oportunamente.

Mas o texto quer discutir a resposta chinesa, no mesmo nível das caracterizações ocidentais, superlativa e barulhenta. A China, discreta no campo geopolítico, a grande beneficiária da lógica de produção pós-queda do muro de Berlim, sempre evitou o conflito. Entre os vários tipos de cinema existentes na China, há um específico – dedicado para o público interno e externo – que se centra em grandes épicos e dramas históricos. Destaco Zhang Yimou (“Lanternas Vermelhas”; “Herói”; “O Clã das Adagas Voadoras”; “Shadows” e etc) como um autor símbolo deste cinema, ao menos um dos mais conhecidos no ocidente. Existe também um cinema mais urbano, moderno, voltado para a China atual, mais crítico aos problemas internos. Cineastas como Wang Xiaoshuai (“Bicicletas de Pequim”; “Sonhos com Xangai”; “Até Logo, meu filho” e etc)

E dentro deste ambiente cultural que expande sua influência – o mercado audiovisual Chinês já é o maior do mundo, superando o estadunidense, arrecadando cifras próximas a US$ 3 bilhões – existe um entendimento cada vez maior da elite política chinesa sobre o potencial do cinema como peça importante na complexa engrenagem das disputas globais. E ai chegamos ao filme “A Batalha do Lago Changjin” (2021), a maior bilheteria de 2021, com uma arrecadação próxima ao bilhão de dólar. O filme apresenta uma leitura – oficial – muito particular da participação chinesa na Guerra da Coreia (1950-1953). Nada diferente do que já realizaram outros países tanto no ocidente, quando no oriente.

Com um orçamento próximo a US$ 200 milhões de dólares, a superprodução chinesa contou com o apoio oficial do PC Chinês – logística, apoio técnico, investimento. O lançamento do filme deu-se em meio às festividades do aniversário de cem anos do PC Chinês, e vários oficiais políticos e militares compareceram ao evento. Diferente do EUA, a China não esconde que este é um filme patrocinado pelo governo. E mais, o filme surge em um período tenso, que atinge o ponto de fervura dos canais diplomáticos, especificamente na disputa real do xadrez geopolítico nos Oceanos Indico e Pacífico, por exemplo, onde as armadas chinesas crescem e dão saltos operacionais, deixando os tradicionais estrategistas e imperialistas ocidentais desconfortáveis, fazendo com que mergulhem em um intrincado jogo de simulações de poder militar na região.

“A Batalha do Lago Changjin” (2021), por Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam.

Aos que já estão familiarizados um pouco com a história da China, o filme, em si, não traz nada de novo. Na verdade, apoia-se em efeitos especiais em demasia, que, para muitos no ocidente, tornam o filme, em alguns momentos, pra lá de artificial. Algo semelhante ao que Hollywood fazia no passado. Ainda que o valor de produção seja facilmente percebido, a muleta da digitalização afeta a entrega da obra, ao menos no seu realismo e brutalidade, típicos de um filme de guerra contemporâneo. O filme é realizado pelos conhecidos cineastas Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam e estrelado pelo muito popular ator, Wu Jing.

O que chama atenção da obra é a maneira caricata e panfletária como retrata os estadunidenses. As falas dos atores dos EUA soam artificiais, idem para as suas ações. O filme retrata os militares estadunidenses como arrogantes, apoiados pelo seu extraordinário aparato bélico. Em especial, seus aviões, que assumem uma forma quase monstruosa, dilaceram soldados chineses com uma fúria demoníaca. Algo, novamente, que o cinema norte-americano também fez com suas representações chinesas, a diferença é que chegou a vez dos ocidentais de serem retratados de uma forma tão caricata. Assim, são filmados como vilões frios e arrogantes. E nós, aqui ao sul do Equador, não temos como esboçar um sorriso contido, como se estivéssemos assistindo uma travessura.

E aqui, entendemos o julgamento moral que o filme faz. A Tropa Chinesa, enviada por Mao para proteger a fronteira Chinesa – e o norte Coreano – de uma investida norte-americana, é a quintessência do soldado abnegado: pobre, orgulhoso, motivado e ciente da sua causa. As carências materiais dos soldados chineses são apresentadas com inconfesso orgulho. Soldados totais, que vencem qualquer obstáculo, quando tomados pelo senso patriótico. Numa cena, os chineses estão famintos e sob uma terrível tempestade de neve. Eles vão compartilhando suas poucas batatas. Sobe a trilha sonora que oferece um quadro sentimental e épico à cena. Corte para o acampamento do EUA, onde o soldados empanturram-se de carne e cerveja.

“A Batalha do Lago Changjin” (2021), por Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam. Crédito: reprodução da internet.

Essa comparação de realidades reflete a moral da guerra moderna, onde o uso de aparatos tecnológicos para matar o inimigo, sem nenhuma chance de reação, e com poucos riscos, define a guerra assimétrica típica das últimas décadas. O filme não quer refletir densamente o tema, mas se utiliza, habilmente, dos códigos visuais aqui mencionados para estabelecer a superioridade moral do soldado chinês frente ao estadunidense, crente na sua fé inabalável na guerra mecânica e asséptica.

Esse diálogo imagético, carregado de simbolismo, não é novo no cinema, obviamente. O roteiro, assinado por Jianxin Huang e Xiaolong Lan, é apoiado por quase todos os estereótipos dos filmes de guerra. Eles não estão interessados em questionar a racionalidade da Guerra, como Kubrick, ou a solidão existencial do soldado, como Fuller, ou até outros cineatas da própria China. Longe disso. O filme é uma peça do partido e não esconde esta característica, envolta em ares de super produção, cheia de efeitos visuais e barulho entorpecente. O público chinês amou. Transformou o filme na maior bilheteria do cinema mundial 2021. Pode ser um reflexo da memória coletiva, em que seus familiares participaram do período conturbado em que a China tentava reunificar-se e, após ser invadida e dividida, expulsar a ameaça estrangeira de seu território e fronteiras.

“A Batalha do Lago Changjin” (2021), por Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam. Crédito: reprodução da internet.

O filme mostra ainda, ao menos por hora, que o público médio chinês, não está interessado em críticas ao seu modelo político-econômico, ou aos personagens recentes da sua história. Seria uma reação ao histórico de críticas e ao ódio atual ocidental às comunidades asiáticas e ao chinês em específico? De qualquer forma, Hollywood, com seus interesses econômicos, permanece tímido para criticar a China. Nos anos 80, o encantamento com o modelo chinês , que contrastava com a depressão soviética, fez do país asiático um lugar convidativo aos olhos e paladares ocidentais.

Filmes como “O último Imperador”, de Bertolucci ou “O Império do Sol”, de Spielberg, retrataram a China em seus filmes como um lugar caótico e belo. Porém, nunca como um país a ser respeitado… Assim, a ofensiva cultural chinesa foi posta em marcha. E a influência desse cinema de resposta e exaltação cresce na influência para além dos bastiões chineses no sul da Ásia. Cada vez mais assistiremos a filmes assim. O campo cultural também sentirá o peso da tensão geopolítica e, do seu modo, oferecerá respostas na mesma moeda, na longa batalha pela construção da narrativa que vai definir o curso do século XXI.

Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2022/02/17/o-cinema-chines-soou-o-clarim-da-guerra-cultural/

Deixe seu comentário

por Anders Noren

Acima ↑

Descubra mais sobre Revista Intertelas

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading