
Aproximadamente 25 anos atrás, meu grande amigo Fabiano Bender (que por essas coisas da vida moderna, acompanho apenas por meio das redes sociais) me chamou para uma mostra de filmes do Zé do Caixão, do “Mojica”. O Fabiano, que estudava cinema na FAAP, já tinha feito um curso de atuação com o próprio Mojica, meses atrás. Aliás, eu e o Fabiano, no início dos anos 90, vivíamos e falávamos de cinema, o tempo todo. Sempre.
Foi um momento de descobertas em nossa vida cinéfila. Democrática. Conciliávamos da Novelle Vague ao terror Italiano. Devorávamos tudo. Naquela época, internet e streaming eram conceitos inexistentes para garotos como nós, desesperados para consumir o que pudéssemos, na empobrecida São Bernardo do Campo dos anos 90. O cinema de horror era a nossa grande convergência estética e temática. Saboreávamos as experiências Gore do jovem Peter Jackson. Vibrávamos com Dário Argento e Lúcio Fúlvio. Mas só cultuávamos um cineasta: Zé do Caixão, o Mojica.
Preciso lembrar, novamente, como era difícil encontrar cópias de VHS de filmes independentes ou fora da máquina da indústria cultural. Vasculhávamos os sebos do centro de São Paulo, e quando achávamos uma cópia escura e cheia de ruídos de um “Exorcismo Negro”, por exemplo, celebrávamos como arqueólogos vasculhando alguma ruína do mundo antigo. Em especial filmes brasileiros. É importante lembrar: o cinema brasileiro tateava uma lenta recuperação depois do desmonte da era Collor. Naquela época, Walter Salles lança o grande “Terra Estrangeira” (1996), um filme profundo e histórico sobre a desesperança da minha geração. Dessa época, lembro do Fabiano cantar repetidamente “Vapor Barato”, da Gal Costa, que encerra o filme de Salles. Aliás….dos finais mais poderosos do cinema brasileiro.
Foi o quando o Fabiano conhece o curso do Zé. Semanas depois, em pleno inverno (de 94, 95, 96….não sei….não me lembro mais) ele me convida para um evento extraordinário: uma amostra dos filmes do Zé do Caixão, num cinema do centro que eu honestamente não me lembro mais. Em disparada, e de forma sucessiva, seriam exibidos: ”A meia-noite Levarei a sua Alma” (1964), “Esta noite encarnarei no teu Cadáver” (1967), “Exorcismo Negro” (1974) e “Delírios de um anormal” (1978).
O cinema aparentava a decadência dos cinemas do centro: assentos rasgados e barulhentos, projeção sem brilho e som ultrapassado. Pelo que me lembro, o cinema estava vazio, resultado da apatia do nosso cinema e do esquecimento sofrido pelo Mojica (que seria resgatado do silêncio preconceituoso no começo dos anos 2000). Então, celebrávamos ali a nossa identidade cinéfila. Mais, um ato de resistência do nosso cinema. Do cinema brasileiro. Assim enxergávamos aquele dia.
Mas não quero descrever o dia de forma épica ou sisuda. Besteira. Lembrando hoje, em perspectiva, lembro com uma saudade que dilacera o peito dos excessos e ilusões da juventude. Das possibilidades que se abriam. Dos sonhos mal resolvidos… Fazia frio. O Fabiano me emprestou um sobretudo, que pertencera ao seu pai. Eu o vesti e o honrei como um detetive desajeitado de um filme noir da RKO. Da viagem que fizemos, de São Bernardo até o centro de São Paulo, aquecíamos nossa ansiedade conversando sobre…filmes. E, andando pelo centro da cidade, num imaginário e longo plano sequência, filosofávamos sobre tudo.
Aquele ambiente de paralisia econômica e de derrota social, de cansaço e desesperança – tão presentes hoje – ajudaram a compor, também, a mágica daquele dia. Éramos dois estudantes perdidos numa sala de cinema suja no centro da cidade, assistindo excertos da obra do Mojica, cineasta genial e maltratado pelo estúpido senso comum. Voltemos ao cinema. Antes dos filmes, entra um Mojica misterioso, cercado de alunos. Aparentava cansaço; mesmo assim, conseguiu agitar os presentes ali. Explicou um pouco cada um dos filmes. Fez recomendações. Agradeceu todos ali. Sentou-se num canto. E as projeções começaram…
Melancólico, penso eu hoje. Um homem que lotou salas de cinema, entre o final dos 60 e começo dos 70, devorado pela máquina do entretenimento mais babaca do país, tornando-se uma figura exótica, e não celebrado pelo artista que era. Me senti assim à época. Mas não lembro de ter comentado com o Fabiano. Aqueles quatro filmes, disparados sem interrupções, nos consumiram quase 7 horas. Saudades daquele dia, daqueles tempos, das possibilidades, dos sonhos, de se apropriar de um universo fílmico tão específico e de se aproximar, ao menos por uma tarde, de um ícone da nossa formação cinéfila.
Inspirados pela experiência, começamos a rodar curtas de horror. O Fabiano tinha uma super 8. Avançou depois para uma câmera VHS, que nos dava mais liberdade para editar e criar. O Fabiano, utilizando a natureza que cercava sua casa de praia em Boracéia, fez a sua versão de “Delírios de um Anormal”. O filme exalava o frescor do horror do Mojica: brasileiro, com cheiro de vela, alma penada e cemitério abandonado. Tudo isso está lá, com ele – o Fabiano. Acho. Será que esse material foi consumido pelo tempo? Nós estamos sendo consumidos por ele. Porque não um punhado de fitas de VHS.
Mais algum tempo depois, participamos de um festival de curtas, patrocinada pela prefeitura de São Bernardo. O filme esbanjava refino na estética da direção do Fabiano e falava pra dentro, para a nossa turma. Brincava com a nossa cinéfila errática. Brincava com a frase de alguém – não me lembro quem – que entre uma coca e uma coxinha, vaticinou: “Eu adoro Monicelli”. Nascia o curta “Eu adoro Monicelli”, onde um casal crescia, amadurecia e, por fim, se casava. A brincadeira era com o diálogo. A garota sempre terminava o quadro dizendo “ahhh, eu adoro Monicelli”…Ela era a Cristie, adorável no papel da garota esperta que ama cinema. Eu era apaixonado pela Cristie….
E eu também era o Padre, que entre caras e bocas, celebrava o casamento, entre risos incontidos e citações jogadas ao vento. Tudo misturado, fruto de 3 dias incansáveis. Me lembro quando o filme foi apresentado, durante o festival. Não ganhamos o prêmio, mas essa experiência “indie suburbana” do Fabiano tirou risos da audiência. Hoje, tudo mudou. Vieram os compromissos, a família, o trabalho, os escapismos, as desculpas…Tudo ficou rápido e agridoce. A vida moderna sequestrou a nossa doçura. Ao menos a minha. Está tudo lá, amontoado no saco das minhas memórias. Mas hoje, 13 de março de 2022, li em algum lugar que o Mojica faz aniversário. A tampa da memória se abriu. E entre uma lembrança mal traçada aqui e ali, procurei rabiscar em frases simples, minha conexão com o Mojica. E com o Fabiano Bender. E a Cristie. E o cinema…
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2022/03/13/dois-perdidos-numa-sala-de-cinema-suja/
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