A geopolítica da fome- perspectivas da presente crise alimentar mundial

Crédito: Popa Matumula/ Cartoon Movement.

’’Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão marcante e apresenta-se com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura.

Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente’’.

Josué de Castro, Geografia da Fome

De todos os estudiosos sobre o fenômeno social, político e econômico da fome, o mais importante continua sendo o brasileiro Josué de Castro. Resgatar esta literatura reflexiva em um momento grave como o presente é necessário para compreender as grandes transformações sistêmicas atuais e o impacto sobre as pessoas comuns, a partir do tipo de sociedade imposta sobre boa parte do mundo nos últimos séculos, por uma classe dominante dos países ocidentais. O esgotamento do presente modelo econômico, social e político ficou evidenciado durante a pandemia da Covid-19. No entanto, já existiam sinais anteriores de que a estratégia do ’’caos social’’ e de militarização de todas relações sociais, políticas e econômicas do capitalismo encaminhavam o mundo para a catástrofe.

As crises migratórias oriundas das guerras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Iugoslávia, Iraque e Afeganistão resultaram em um espaço de três décadas no surgimento do maior grupo de pessoas refugiadas no mundo desde a Segunda Guerra Mundial. O neoliberalismo na América Latina e em países africanos apontava em uma direção de instabilidade política geral em razão da ampliação da pobreza e da fome estrutural em níveis semelhantes ao século XIX. Mesmo nos países do grupo das sete principais economias do mundo (G7), a desigualdade social, a fome e outros problemas que até a década de 1980 eram muito mais presentes em países do Sul-Global passaram a estar presentes.

Nenhum dos problemas atuais nascem com o início da operação militar russa na Ucrânia a partir de 24 de fevereiro de 2022. Culpar o governo russo de todos os males da Terra para ’’cancelá-lo’’ do sistema internacional é um subterfúgio confortável para os verdadeiros responsáveis do caos- alguns do quais também são responsáveis pela situação ucraniana. A grave crise de abastecimento de produtos básicos em andamento no mundo atual esteve também presente durante a pandemia na forma da negligência ocidental de vacinas e medicamentos para os países pobres.

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A reação militarizada da OTAN contra a afirmação da Rússia como potência política e militar, e igualmente contra a China na perspectiva econômica e ideológica, apresenta um novo tipo de abordagem policialesca, encarnada na Estratégia Indo-Pacífica. Esta estratégia consiste no domínio das cadeias produtivas e contenção dos atores que sejam contrários à Ordem Baseada em Regras- Rules Based Order– por meio de um reforço da hegemonia estadunidense sobre as instituições políticas e financeiras internacionais. Em outras palavras, a ideia geral é tornar o ocidente uma espécie de Robocop Global.

Embora as consequências de um cancelamento russo- e talvez mais tarde da própria China- do sistema internacional sejam caóticas para o mundo, mesmo para a próprio ocidente, é difícil dizer que a fome generalizada como resultado seja coincidência, e não um instrumento de reforço de poder. A grande questão com relação ao complexo agroindustrial russo não é apenas a capacidade de exportar alimentos, mas sobretudo tecnologia. Diferente do agronegócio existente nos Estados Unidos e na Europa, cuja produção e monopólio de tecnologia é voltado para alimentar o mercado interno, a Rússia tinha parte de seu complexo agroindustrial direcionado à exportação de tecnologia e insumos essenciais para a soberania alimentar e econômica de uma série de potências agrícolas no Sul-Global.

Família camponesa na Índia. Crédito: Mukul Soni via Flickr (CC BY-NC-SA).

A saída russa destes mercados abre a oportunidade para que empresas do ocidente assumam o controle da produção agrícola nestes países, a partir da quebra induzida de pequenos e médios agricultores. O mais grave disso é que o complexo agroexportador destes países será por consequência pressionado por meio de contratos, ou até mesmo coerção política direta a vender boa parte, senão toda a produção alimentar para abastecer o ocidente em crise inflacionária. O Brasil vem sendo o exemplo explícito de como esta estratégia é perversa, pois apesar de ser o país que produz mais comida no mundo, é atualmente uma nação em que 75% das pessoas mais pobres sofrem com algum nível de fome devido ao não consumo dos nutrientes diários mínimos necessários para a saúde.

Aliás, a pressão sobre os preços das matérias-primas no ano de 2021 cresceu em consonância com os pacotes trilionários do governo Biden para socorrer as instituições financeiras e grandes corporações que usaram este dinheiro e causar uma inflação induzida em escala mundial. Isso buscou atrair agricultores e empresas de mineração para a venda de seus produtos em dólar. Esse movimento gerou uma grande discussão em potências agrícolas na Ásia, em especial Indonésia, Índia e Tailândia que desde meados do ano passado impuseram restrições para a exportação de alimentos como o arroz.

Entretanto, não são todos os países que possuem a capacidade de impor restrições à exportação de alimentos e produtos básicos, seja por questões políticas, seja por questões econômicas. A Costa do Marfim, por exemplo, depende quase que inteiramente da exportação de cacau, assim como países da América Central precisam da exportação de frutas e alimentos para obter boa parte da entrada orçamentária e mantêr empregos- ainda que muitos sejam de baixa qualidade e em condições precárias. Em boa parte destes países não existe uma cadeia produtiva mais complexa e uma economia que abranja outros setores. Portanto, os efeitos diretos de restrições resultariam em graves consequências a curto prazo.

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Diante de um cenário como este, a acusação de protecionismo evidencia como a presente crise alimentar mundial induzida possui profundas origens geopolíticas. O mundo não tem falta de alimentos, aliás, nunca se produziu tanta comida neste planeta na história da humanidade. Um estudo publicado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos (FAO) em 2016 apontou que existe alimento suficiente para saciar os 7,3 bilhões de habitantes da Terra. Portanto, o problema não é matemático/populacional, nem mesmo propriamente técnico e produtivo.

O exercício de controle sobre as cadeias produtivas e logísticas de alimentos e outros insumos estratégicos permite uma projeção de poder. As sanções econômicas não são um fim em si mesmas, mas um meio para atingir o objetivo de assegurar a manutenção de uma hegemonia do ocidente, mais especificamente dos Estados Unidos sobre o globo. Inclusive, este controle tornou-se essencial para a própria sobrevivência destes países atualmente, visto que nem os Estados Unidos, nem a Europa são capazes de produzir alimentos, insumos agrícolas, equipamentos industriais e outros produtos suficientes para abastecer a sua população. As décadas de neoliberalismo destruíram todo o parque produtivo construído ao longo dos séculos XIX e XX. A ’’pirataria’’ no início da pandemia comprovou este resultado.

Entretanto, ao invés de reconstituir estas estruturas industriais e criar produtividade, os Estados Unidos e o ocidente buscam manter o estado caótico atual que continua a beneficiar a acumulação desenfreada de uma classe parasita, com o barateamento do processo produtivo para manter o ciclo da ’’democracia consumista’’ em partes da sociedade ocidental. Para obter sucesso nessa empreitada, tornou-se necessário um controle militarizado e o uso crescente de leis de período de guerra como o Defense Production Act (Lei de Produção para a Defesa), acionadas para tentar garantir o suprimento de insumos essenciais para a produção e o consumo. Ontem foram máscaras e ventiladores, hoje são semicondutores, e amanhã pode ser feijão, arroz, trigo e outros alimentos.

As consequências deste movimento já são sentidos em todo o mundo. A África está próxima de sofrer com a maior taxa de mortes de seres humanos por inanição na história. Os atuais cerca de 330 milhões africanos, que não conseguem ter acesso ao alimento necessário para sobrevivência, podem ficar sem o fornecimento de produtos dos mercados alomentícios mundiais em razão da conjuntura descrita. É importante apontar que a África já sofreu duramente com a pandemia da Covid-19 por falta de assistência de parte da comunidade internacional.

Crédito: reprodução da internet.

O mesmo cenário pode ser encontrado na América Latina que apenas durante a pandemia perdeu cerca 2 milhões de pessoas e vê 13 milhões de habitantes sob risco iminente de fome grave- este número não inclui os 76 milhões de brasileiros. Portanto, podemos estar diante de uma queda populacional vertiginosa e induzida em vários países do Sul-Global, pois a lógica é, países rurais menos populosos, podem exportar mais alimentos. Esta lógica inspirada no malthusianismo resume o problema da fome à grande população por meio de discursos liberais sobre as mudanças climáticas. No entanto, há quem relacione diretamente a teoria malthusiana com o problema da fome. É possível ler em um artigo recente divulgado na Jovem Pan o seguinte:

’’O que preocupa, todavia, não é a quantidade de alimentos, mas sim seu valor nutritivo e, principalmente, como alertam os Neomalthusianos, sua distribuição. Enquanto algumas regiões serão sempre muito bem sustentadas, outras, mais pobres, passarão fome. Essa diferença nutricional pode ser observada dentro dos próprios países. É possível encontrar parte da população bem alimentada, mas, no mesmo território, pessoas desnutridas. Regiões como a África, por exemplo, são sinônimos de desigualdade.

Devido às guerras, ao aumento populacional descontrolado, à corrupção e aos problemas ambientais, a fome é desesperadora. São essas populações que precisam ser socorridas. E com urgência. Portanto, no dia em que nos lembramos da morte de Thomas Malthus temos uma boa oportunidade para refletir a respeito da fome no mundo. Esse é, sem dúvida, o grande drama dos nossos dias.

Ao contrário do que previa o autor de ‘Ensaio sobre a população’, o planeta tem condições de produzir os alimentos, o que precisamos encontrar agora é uma forma de distribuí-los para que todos tenham acesso a eles. Afinal, não é possível imaginar que alguém possa ficar indiferente a uma pessoa, especialmente uma criança, que morre de fome. E há milhões delas perdendo a vida porque não têm o que comer’’. 

Reinaldo Polito, divulgado na Jovem Pan, título: “Estudos de Malthus de 187 anos atrás sobre a fome e a falta de alimento ainda são preocupantes”

Entre as classes dominantes de países no mundo inteiro, em especial no ocidente, emergiu com muita força uma retórica neomalthusiana durante a pandemia para justificar a tragédia sanitária. Existe um discurso que busca normalizar a mortandade desnecessária de seres humanos destas áreas durante a pandemia em nome da ’’saúde’’ de um ente quase que ’’divino’’ chamado economia. A concentração de vacinas e medicamentos pelos países ocidentais é realizada a partir deste discurso.

Este neomalthusianismo também emerge de forma sutil na presente crise alimentar com o apontamento de causas climáticas, a pandemia e a própria guerra na Ucrânia como causas diretas. Busca-se mesmo imputar a culpa da fome generalizada aos países que se recusam a exportar os alimentos para abastecer a Europa e os Estados Unidos. E é evidente que o principal argumento é o ’’maligno’’ protecionismo de países como Índia, Indonésia e Argentina. Países populosos e que possuem profundos problemas sociais e econômicos.

Diante deste cenário, a instabilidade política geral e o caos tendem a ampliarem-se ainda mais, favorecendo apenas mais saqueio, guerras e violência em nome da segurança do controle de recursos alimentares. Pelo menos desde 2015 vem ocorrendo uma série de protestos por países no Sul-Global, mas que cada vez mais chegam ao norte, onde as principais reivindicações passam pelo acesso à alimentação e bens básicos de consumo como energia elétrica. O exemplo caótico mais recente desta tendência foi o Sri Lanka que decretou moratória da dívida e hoje é incapaz de garantir alimentos básicos para a população, algo que resultou na série de protestos massivos pelo país contra o governo.

Manifestantes contra o governo no Sri Lanka em razão da crise econômica e alimentar no país. Crédito: Wikipedia.

Esta crise ainda está no início, pois os impactos da desarticulação das cadeias produtivas resultarão em colheitas menores e desabastecimento apenas a partir dos próximos meses. Se em 2022, o problema econômico central foi a inflação, em 2023, e possivelmente ainda em 2024, será o desabastecimento de alimentos e a fome em vários países do Sul-Global. Uma conjuntura previsível e evitável a partir das políticas macro-econômicas irresponsáveis por parte dos Estados Unidos. Não é por acaso que um dos temas principais da Cúpula pela Democracia em Dezembro foi o combate a tendências antiliberais nas democracias ocidentais por meio da reabilitação do Mcarthysmo. O aparecimento de convulsões sociais e revoltas populares será inevitável.

A Cúpula da Cruzada pela Democracia: competição estratégica com a China e doutrina contra-insurgente

Portanto, é inevitável concluir que não estamos diante de um processo de ampliação da fome por questões naturais ou puramente conjunturais, trata-se sobretudo de um projeto sistêmico e político. Presenciamos a ação de uma Geopolítica da Fome. Ela é assim definida por Josué Castro em um livro menos famoso no Brasil chamado Geopolítica da Fome:

’’É apenas um método de interpretar a dinâmica dos fenômenos políticos em sua realidade espacial, com suas raízes agarradas ao solo circundante. Poucos fenômenos influenciaram tão intensamente a conduta política dos povos como o fenômeno alimentar, a trágica necessidade de comer; daí a vívida e cruel realidade de uma geopolítica da fome.’’

Josué de Castro, Geopolítica da Fome

Referências

AL JAZZERA. UN: Record 193 million people faced food insecurity in 2021. 2022. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2022/5/4/un-record-number-of-people-without-enough-to-eat-in-2021.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome- O dilema brasileiro: pão ou aço. Editado por Antares, Rio de Janeiro, 1984.

______. Geopolítica del hambre. Editado pela Universidade Nacional de Lanús, Buenos Aires, 2019.

FUENTES-NIEVA, Ricardo. Growing hunger, high food prices in Africa don’t have to become worse tragedy. In: AFRICA RENEWAL. 2022. Disponível em: https://www.un.org/africarenewal/magazine/may-2022/growing-hunger-high-food-prices-africa-dont-have-become-worse-tragedy.

POLITO, Reinaldo. Estudos de Malthus de 187 anos atrás sobre a fome e a falta de alimento ainda são preocupantes. In: Jovem Pan. Disponível em: https://jovempan.com.br/opiniao-jovem-pan/comentaristas/reinaldo-polito/estudos-de-malthus-de-187-anos-atras-sobre-a-fome-e-a-falta-de-alimento-ainda-sao-preocupantes.html.

QI, REN. Western sanctions blamed for global food crisis. In: China Daily. 2022. Disponível em: https://global.chinadaily.com.cn/a/202205/24/WS628c393fa310fd2b29e5e949.html.

Vídeos

CGTN. What has led to the coming food crisis? What shall we do? 2022 

REDE TVT. “Dependência do Brasil em fertilizantes pode gerar problema alimentar mundial” | Latitude Brasil. 2022 

 

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por Anders Noren

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