O martírio da classe operária em “Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach

Dave Johns e Malcolm Shields em “Eu, Daniel Blake”. Crédito: IMDb.

O combativo Ken Loach “Eu, Daniel Blake” é um grito político e social que o diretor britânico realiza com sensibilidade e urgência. O estilo narrativo de Loach é simples, formal, sem arroubos técnicos. Seu óbvio interesse é contar uma história simples e poderosa, que desenvolve com costumeira eficiência. Dos seus filmes emana a ideia clara de superioridade moral da classe trabalhadora. Seus personagens são tenros, falhos, honestos e, fundamentalmente, solidários. Acima de tudo, humanos…

Para atingir os propósitos dos seus filmes, Loach dirige seus atores de forma espontânea, conseguindo interpretações realistas e naturais. Sua câmera é respeitosamente distante da ação, em planos abertos e quase sempre com luz natural, o que acentua o tom documental da ação. No seu cadinho de referências fervilha muito mais o humanismo neorrealista de Roberto Rossellini e Vittorio De Sica do que as experimentações estéticas dos jovens franceses da “Novelle Vague”. Por isso, sua trajetória é tão singular, mesmo o comparando com outros cineastas importantes da “British New Wave”, como Lindsay Anderson, Nicolas Roeg, Ken Russel e John Boorman.

Em seu “Eu, Daniel Blake”, o diretor vai direto ao ponto. Fiel ao seu estilo, narra com econômica precisão o drama de um homem, Daniel (interpretado com emoção e carinho pelo ótimo Dave Johns), um doente recém-enfartado que se vê, progressivamente, preso nas entranhas da burocracia do departamento de previdência, impedindo-o de receber uma pensão enquanto aguarda ser liberado para o trabalho pelo médico indicado pelo Estado.

O drama kafkiano vivido por Daniel consiste em receber recomendações distintas da previdência e dos médicos. Enquanto os primeiros atestam que ele não receberá a pensão por estar apto ao trabalho, os segundos recomendam repouso. No caminho de penitência do protagonista, o inventário de ataques sofridos pela classe trabalhadora nos últimos anos: terceirização e precarização do trabalho, políticas de redução do gasto social, a desumanização tecnocrática do serviço público, o aposentado eleito como vilão do equilíbrio orçamentário…

Dave Johns, Hayley Squires, Briana Shann, e Dylan McKiernan em “Eu, Daniel Blake”. Crédito: Joss Barratt – © 2016 – Sundance Selects/IMDb.

A solidariedade e altivez moral da classe trabalhadora é onipresente no filme. Daniel é realmente querido e desperta atenção e preocupação dos ex-colegas de trabalho, do jovem vizinho sonhador e que comercializa tênis pirateados da China e até da funcionária da previdência, cada vez mais sensibilizada ao presenciar as humilhações do personagem. Daniel também abraça a jovem Katie (Hayley Squires) e seus filhos pequenos, que passam por dificuldades, em parte ocasionadas pela mesma insensibilidade administrativa do Estado. A gerente da agência de previdência e serviços sociais tem a dureza de um “Javert”, no seu rigor (e insensibilidade) profissional.

A sequência no centro de distribuição de alimentos para pessoas carentes é, certamente, das mais dilacerantes da história do cinema. O estilo narrativo e a direção de atores de Loach ajudam na composição da cena onde Katie avança contra uma lata de alimentos em conserva por estar esfomeada. Poucas vezes a humilhação social foi encenada de uma forma tão dura. Seu realismo e a certeza da reprodução de dramas parecidos na vida real acentuam a dor e a tristeza da cena. O filme torna-se uma experiência angustiante ao acompanhar a sucessão de problemas e impedimentos legais que submetem os protagonistas, onde não existe solução à vista. O progressivo estrangulamento financeiro os joga no desespero e na humilhação.

Loach ensaia a tentativa de revolta. O personagem Daniel, em um determinado momento, provoca as autoridades ao pichar, na parede da agência da previdência, o seu protesto. Ganha a atenção do público, o que sugere uma virada naquela história. Talvez fosse verdade se o filme estivesse nas mãos de realizadores sequiosos por saídas fáceis e convencionais, bem ao gosto do realismo romântico fechado de Hollywood. Para Loach e seu roteirista, Paul Laverty, impera a cinzenta realidade dos dias atuais. Daniel é liberado após ser ameaçado de prisão pela autoridade policial e afunda na depressão.

O gosto agridoce encharca nossas bocas e consciências. O grito de Loach é a denúncia fílmica que só alguém como ele poderia levar a cabo. O incômodo vem da naturalização dessa violência, que condena grande parte da população para a marginalidade social, pura e simples. Como alertou Piketty no seu livro “Capital do Século XXI”, essa voracidade plutocrática contra direitos sociais empurrará as sociedades industriais para níveis inéditos de concentração de renda, além de condenar a crença na democracia como valor universal. O desfecho da história, no 3º ato do filme, é particularmente doloroso, revelando um ceticismo cortante do seu diretor. Este filme de Loach mostra a necessidade urgente dessas histórias serem contadas.

Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2017/01/09/o-martirio-da-classe-operaria-em-eu-daniel-blake-de-ken-loach/

Título: Eu, Daniel Blake
País: Reino Unido, França, Bélgica
Direção: Ken Loach
Roteiristas: Paul Laverty
Elenco: Dave Johns, Hayley Squires, Sharon Percy e outros.
Duração: 1h40min
Lançamento: 9 de junho de 2017 (EUA)
Idioma: inglês
Legendas: português

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por Anders Noren

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