
A escritora e jornalista Svetlana Aleksiévitch foi Nobel de Literatura em 2015. Na ocasião, aos 67 anos, recebeu o prêmio em razão da sua escrita que fazia um monumento ao sofrimento e coragem de nossa época. A razão do prêmio é de imensa importância, mas genérica, porque aplicável a um grande número de escritores de talento. Os burocratas do Nobel devem ter isso como um carimbo que estampam nas proclamações oficiais.
Em pesquisa sobre a escritora, vemos em sites de informação gerais como a Wikipédia, o registro de que ela se apoiou em “um novo género de escrita chamado de ‘novela coletiva’, ‘novela-oratório’, ‘novela-evidência’, ‘gente dançando com lobos’ ou ‘coro épico’. De fato, nos seus textos a meio caminho entre a literatura e o jornalismo. Ela usa a técnica de collage justapondo testemunhos individuais, com o que consegue aproximar-se mais à substância humana dos acontecimentos”. Mas isso ainda é vago e impreciso, porque esse gênero de literatura há muito recebeu o nome de “jornalismo literário”. Melhor entrar logo no seu específico, o grande livro “A guerra não tem rosto de mulher”.
E adianto logo sem qualquer consulta às suas páginas. Um dos méritos de Svetlana Aleksiévitch foi trazer para todo o mundo o papel guerreiro, fundamental da mulher na Segunda Guerra Mundial. Mas essa participação só foi possível na paisagem, ora, paisagem, na organização política da Revolução de 1917. A mulher soviética, devo dizer, aquela que foi imensa, amorosa e dura nas mais cruéis condições. Poderia ser dito: a vida de todos os soldados e de todo o povo soviético era dificílima. Muito bem. Mas o que ninguém sabia era que a mulher pagou um preço alto nessa luta, fora do que o capitalismo chama de “mundo feminino”: os papéis secundários, que ninguém nota. (Nestes dias, com minha esposa internada em hospital, assumi todos os trabalhos domésticos. E disse à minha filha: “como é pesado o trabalho invisível!”).

Mas quero dizer que o mundo soube, em “A guerra não tem rosto de mulher”, com depoimentos lindos, eloquentes, vivos, que a guerreira soviética esteve em todas as frentes de batalha, todas, atirando, dirigindo tanques, aviões, até como atiradora de elite do nível altíssimo de uma jovem Ludmila. Meu Deus do Céu, ai de quem estivesse sob a sua mira. Ela não errava uma só cabeça. Isso quer dizer, enquanto em outros países a mulher integrou-se em papéis de enfermeira, retaguarda, ou estrela pop de soldados (“Era mulher, não era?”, perguntaria um diretor de operações capitalista), na guerra dos soviéticos, na guerra sem fronteiras, na defesa do solo absoluto de identidade, sem a mulher não teria vitória possível. E se houvesse, somente com homens, seria muito mais amarga e enlouquecida.

Passemos agora a outro nível de compreensão da história. O papel das mulheres soviéticas na guerra como protagonistas é um fato. Mas os fatos, por maiores que sejam, não falam por si. Para todos os homens do mundo, os fatos em si não realizam aquela fala que fere o coração. Esse condão que revela o desconhecido, de modo mais eloquente, é função de quem sabe contar uma história, um trabalho da escritora. Se a grande Svetlana Aleksiévitch se desse maior, mais paciente e difícil tarefa (palavra do mundo da militância socialista), teria escrito um romance épico, histórico, para todos os tempos. Talvez, quem sabe, um novo “Guerra e Paz”.
O filme russo a “Batalha de Sevastopol” (2015), de Sergei Mokritskiy, conta a vida da atiradora de elite Liudmila Pavlitchenko que virou símbolo de resistência ao Nazismo.
Ou seja, as pessoas seriam personagens com uma história mais ampla, íntima, ao longo dos acontecimentos da guerra, até aquele instante de içar a bandeira dos povos em Berlim. É claro, falo no reino das hipóteses, como um glutão cujo apetite não é pequeno. Entendem? Ela realizou a maravilha de um livro “apenas” com depoimentos de mulheres que viveram a guerra, e que as revelações subiram à flor da página com a graça da mão da escritora. Em muitas páginas, o leitor suspende a leitura porque recebeu a carga de explosiva poesia, de um poema em prosa que deixa a agente a refletir, a pensar, andando pela sala como siderado, “Que mundo!”, nos exclamamos em voz silenciosa. Com absoluta certeza, a escritora pesquisou, escolheu, editou, reescreveu, e voltou mais de uma vez para conferir aqueles corações humanos, muito humanos. ,
Agora, devo fazer uma confissão. Todas as linhas acima foram escritas somente com a visão da capa do livro, que tenho sobre a mesinha do computador. Escrevi-as sob a lembrança do seu impacto. Mas ninguém acreditará no escrito se não for transportado para o seu interior Por isso, abro suas páginas, de onde copio alguns momentos que provam o que escrevi até aqui. Mas, advirto, só alguns depoimentos, porque se obedecesse ao impulso deveria copiar metade do livro. Copio e não comento, para evitar a moldura da sensibilidade, um retângulo na parede sobre a humanidade.

Trechos de “A guerra não tem rosto de mulher”
“Eu estava no turno da noite… Entrei na enfermaria de feridos em estado grave. Um capitão estava deitado. Os médicos tinham me avisado antes do turno que ele morreria à noite. Não chegaria até a manhã… Perguntei pra ele: ‘E então? Em que posso ajudar?’. Nunca vou me esquecer…. Ele de repente sorriu, um sorriso tão luminoso em um rosto esgotado: ‘Abra o seu avental … Me mostre o seu seio… Há muito tempo não vejo a minha mulher….’. Fiquei desnorteada, eu nunca havia nem dado um beijo. Respondi algo para ele. Saí correndo e voltei uma hora depois. Ele estava morto. E ainda tinha aquele sorriso no rosto”.
A seguir, o depoimento de Albina Aleksándrovna, primeiro-sargento, batedora:
“Lembro que uma vez me deram dispensa. Antes de ir ver minha tia, passei em uma loja. Antes da guerra eu adorava bombons. Falei:
‘Me dê uns bombons’.
A vendedora olhava para mim como se eu estivesse louca. Eu não estava entendendo o que eram os cupons de comida, o que era o cerco. Todas as pessoas na fila se viraram para me olhar: eu estava com um fuzil maior do que eu. Dias antes, quando me entregaram a arma, olhei e pensei: ‘Quando vou crescer o bastante para ficar do tamanho desse fuzil?’. E de repente, na loja, todos começaram a pedir, toda a fila:
‘Dê os bombons para ela. Pegue os nosso cupons’
E me deram…
A minha primeira Medalha por Bravura.
O combate começou. Fogo aberto. Os soldados se agacharam. Deram a ordem: ‘Em frente! Pela pátria!’, e os soldados abaixados. Deram a ordem de novo, e eles abaixados. Tirei o gorro, para que vissem que uma menina tinha se levantado…. Então todos se levantaram e fomos para o combate”.
O filme russo “Uma Mulher Alta” (2019), de Kantemir Balagov, retrata o imediato pós-guerra de uma perspectiva feminina.
Leia Mais: “Uma mulher alta”: o retorno à vida após sobreviver a tormenta de uma guerra genocida
De Lília Aleksándrovskaia, artista:
“Uma vez, depois de um concerto … Em um grande hospital da evacuação…. O médico-chefe se aproximou de mim e pediu:
‘Temos aqui, numa enfermaria individual, um tanquista gravemente ferido. Ele não reage a quase nada, mas talvez sua canção o ajude’.
Fui até a enfermaria. Por toda a minha vida, nunca vou esquecer aquele homem que, por um milagre, conseguiu sair de um tanque em chamas e teve queimaduras da cabeça aos pés. Estava imóvel, estendido na cama, com o rosto negro, sem olhos. Senti um nó na garganta e levei alguns minutos para retomar o controle. Depois, comecei a cantar baixinho…. Vi que o rosto do ferido se mexeu um pouco. Sussurrou algo. Eu me inclinei e escutei:
‘Cante mais’.
Cantei mais e mais, apresentei todo o meu repertório, até que o médico-chefe disse:
‘Acho que ele dormiu’ ”.
As “Bruxas da Noite” foram aviadoras soviéticas que atormentaram os nazistas durante a noite. O documentário feito por Gunilla Bresky conta a história dessas veteranas.
Leia mais: Bruxas da Noite: as aviadoras soviéticas que derrotaram o Nazismo
De Efrossínia Grigórevna Breus, capitã, médica:
“Estávamos atravessando a Prússia Oriental, todos já estavam falando da Vitória. Ele morreu … Morreu instantaneamente … Pelos estilhaços … Morte instantânea. Em um segundo. Me informaram que o corpo tinha sido trazido, corri para lá … Eu o abracei e não deixei que o levassem. Para enterrar. Na guerra, faziam os enterros logo em seguida: no dia da morte, se a batalha era rápida, juntavam todos na hora, traziam de todos os lugares e cavavam uma grande fossa. Cobriam. Às vezes, só com areia seca. E se você olhasse muito tempo para essa areia, parecia que ela se mexia. Tremia. A areia sacudia. Porque lá … Para mim, ainda havia gente viva, estavam vivos havia pouco. Eu os via, falava com eles … Não acreditava … Todos nós andávamos por ali e não acreditávamos que eles tinham ido para lá … Lá onde?
Não permiti que ele fosse enterrado ali. Queria que ainda tivéssemos mais uma noite. Deitar ao lado dele. Olhar … Afagar …
De manhã … Decidi que o levaria para casa. Para a Bielorrússia. E isso ficava a milhares de quilômetros. Estradas de guerra … Uma confusão … Todos acham que eu tinha ficado louca de tanta dor. ‘Você precisa se acalmar. Tem que dormir’. Não! Não! Eu ia de um general a outro, e assim cheguei ao comandante do front, Rokossóvski. No começo ele recusou … Estava louca! Quantos já estavam enterrados em valas comuns, em terras estrangeiras …
Tentei mais uma audiência com ele:
‘Quer que fique de joelhos?’
‘Eu entendo … Mas ele já está morto …’
‘Não tive filhos com ele. Nossa casa foi reduzida a cinzas. Até as fotografias foram perdidas. Não ficou nada. Se eu o levar para a nossa terra, restará ao menos o túmulo. E vou poder voltar para lá depois da guerra.’
Ele ficou calado. Andava pelo gabinete. Andava.
‘O senhor já amou alguma vez, camarada marechal? Eu não estou enterrando meu marido, estou enterrando meu amor.’
Silêncio.
‘Senão, também quero morrer aqui. Para que vou viver sem ele?’
Ele passou muito tempo calado. Depois, se aproximou e beijou minha mão.
Deram-me um avião especial por uma noite. Entrei no avião … Abracei o caixão… E perdi a consciência”.
De Anna Nikoláievna Khrolóvitch, tenente da guarda, enfermeira:
“Tantos anos vendo homens de farda militar, capote, e aquele estava de sobretudo preto com gola de pele.
‘Preciso de sua ajuda’, o homem me disse. ‘A dois quilômetros daqui, minha mulher está dando à luz. Ela está sozinha, não há mais ninguém em casa.’
O comandante retrucou:
‘É na faixa neutra. Você sabe, não é seguro.’
‘Uma mulher está parindo. Tenho que ir ajudá-la.’
Deram-me cinco atiradores de fuzil. Preparei uma bolsa com material para curativos; havia pouco tinha recebido uns panos de flanela e também os levei comigo. Saímos. Ouvíamos troca de tiros o tempo todo – ora tiros curtos, ora pelo alto. A floresta estava tão escura que nem se via a lua. Finalmente apareceu a silhueta de uma construção. Revelou-se ser um sítio. Quando entramos na casa, vi a mulher. Estava deitada no chão, em uns trapos velhos. O marido na mesma hora começou a fechar as cortinas. Dois atiradores ficaram no pátio, dois ao lado da porta, e um me iluminava com a lanterna. A mulher mal continha os gemidos, estava com muita dor.
Eu pedia a ela o tempo todo:
‘Segure, querida. Não pode gritar. Segure.’
Ali era a faixa neutra. Se o inimigo notasse alguma coisa, lançaria projéteis em cima de nós. Mas, quando os soldados escutaram que a criança tinha nascido … ‘Viva! Viva!’ Assim baixinho, quase num sussurro. Nasceu uma criança na linha de frente!
Trouxeram água. Não tinha onde ferver, limpei a criança com água fria. Envolvi-a com meus panos. Não encontrei nada na casa, só os trapos velhos onde a mãe estava deitada.
E assim consegui, com dificuldade, ir até aquele sítio outras noites. Fui uma última vez antes do ataque e me despedi:
‘Não vou mais poder vir. Estou indo embora.’
A mulher perguntou algo em letão ao marido. Ele traduziu para mim:
‘Minha esposa está perguntando como você se chama.’
‘Anna.’
A mulher disse algo de novo. E o marido traduziu mais uma vez:
‘Ela está dizendo que é um nome muito bonito. E, em sua homenagem, vamos chamar nossa filha de Anna.’
A mulher se soergueu – ela ainda não conseguia ficar de pé – e estendeu para mim uma bela caixa de pó de arroz cor-de-rosa. Pelo visto, era seu objeto mais valioso. Abri a caixa, e aquele cheiro à noite, quando trocavam tiros à nossa volta, lançavam bombas … Era algo … Até agora me dá vontade de chorar … O cheiro de pó de arroz, aquela tampa cor-de-rosa … Um bebê pequeno … Uma menina … Era algo tão caseiro, de uma verdadeira vida de mulher”.
Por fim, esta informação de “A guerra não tem rosto de mulher” nas primeiras páginas:
“No Exército soviético lutaram aproximadamente 1 milhão de mulheres. Elas dominavam todas as especialidades militares, inclusive as mais ‘masculinas’. Com beleza e bravura”.
Urariano Mota
Escritor e jornalista, autor de “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”. Colunista do Vermelho, Jornal GGN, Brasil 247 e Revista Intertelas
Parabéns Uraniano! Magnífico relato do grande papel desempenhado pelas mulheres russas durante a Segunda Guerra. Sua participação também foi decisiva como aviadoras.As aviadoras da União Soviética eram muito jovens e destemidas. Participaram ativamente do ponto de virada da guerra a favor dos aliados que ocorreu com a derrota nazista em Leningrado.